Viagem à Cuba, por Gustavo Azeredo

Eu sei. Estou em dívida com vocês. Desde que partimos para a nossa Volta ao Mundo não consigo atualizar o blog com frequência. Mas espero que vocês entendam que é muita coisa acontecendo. Boas, é claro. E que mais cedo ou mais tarde, contarei tudo por aqui.

O destino tem sido generoso conosco. E as pessoas que temos conhecido neste semestre sabático têm tornado tudo ainda melhor. E não é só gente da estrada. Tenho mantido contato online com muita gente bacana. Pessoas que compartilham o mesmo amor pelas viagens, que vêm nos ajudando e incentivando muito.

Uma dessas pessoas é o Gustavo Azeredo, o Mineiro. Para falar a verdade nem sei bem como ele chegou até a mim, mas desde então, tem nos dado a maior força com a Volta ao Mundo.

Gustavo é um viajante irremediável. Viajou por 20 meses pelo Mundo, por 31 países e 141 cidades. Chegou há apenas 6 meses e em breve partirá para mais uma odisséia. Desta vez, viajará, durante quatro meses, por México, América Central e Flórida.

Durante sua Volta ao Mundo, Mineiro escreveu diários de viagem para amigos e familiares. Ele nos enviou seu relato de Cuba, país que mais o impressionou. Sou suspeita para falar, mas só de ler o texto já deu vontade de pegar um avião direto para a ilha, que já incluí na minha listinha que nunca acaba de próximos países.

Boa viagem!

Cuba por Gustavo Azeredo, o Mineiro

Entender e digerir Cuba é como ler Guimarães Rosa, é para ruminantes. Andar por Havana é uma viagem no tempo em meio a construções antigas e os famosos carros americanos da década de 50 circulam para todo lado. Diz-se haver em torno de 65 mil desses carros em Cuba, sendo que muitos deles estão em perfeito estado de conservação. Para se comprar um deles custa em torno de 10 mil dólares, mas não se pode tirá-los de Cuba, do contrário já não teria mais nenhum lá.

Carros da década de 50 circulam em Havana até hoje
Carros da década de 50 circulam em Havana até hoje

De longe, muitos de nós temos uma idéia formada de Cuba, que às vezes não passa nem perto da realidade. É um país que não se entende em uma viagem só, muito menos em 11 dias como foi o meu caso. Não obstante, tive muita sorte de conviver nesse curto período com uma variedade bem grande de pessoas e pontos de vista.

Alguns dados para deixar claro:

– Cuba é uma ditadura socialista (parece óbvio, mas ainda tem gente falando que é comunista).

– Os cubanos podem sim viajar para outro país, mas para isso necessitam de uma carta convite de alguém de fora de Cuba.
– A internet em Cuba ainda é por modem e telefone e é muuuuuito lenta. Custa caro ter uma licença para ter internet, mas muito cubano tem em casa. Quem aluga quarto oferece o serviço por 5 CUC (5 dólares) a hora.
– Che Guevara como já era de se imaginar é idolatrado em Cuba, existem faixas, cartazes e afins para todo lado com suas frases, e relatos dos seus feitos históricos.
– Xadrez é muito popular em Cuba e as pessoas jogam nas ruas a noite.
– Não existe pobreza como outros países e não ha pessoas vivendo nas ruas.

– O regime ainda é ditadura, embora algumas coisas estejam diferentes com o Raul Castro.

(da Wikipédia)

“(…)Cuba tem uma taxa de alfabetização de 99,8%,[6][7] uma taxa de mortalidade infantil inferior até mesmo à de alguns países desenvolvidos,[8] e uma expectativa de vida média de 77,64.[6] Em 2006, Cuba foi a única nação no mundo que recebeu a definição da WWF de desenvolvimento sustentável; ter uma pegada ecológica de menos de 1,8 hectares per capita e um Índice de Desenvolvimento Humano de mais de 0,8 em 2007.”

Estátua de Che Guevara, em Santa Clara
Estátua de Che Guevara, em Santa Clara

Bom, eu cheguei em Havana por volta das 20h30, o aeroporto é longe do centro e eu ainda não tinha nenhuma informação objetiva de como chegar ao hostel que eu havia reservado (único hostel em Havana).

Vi dois outros turistas na esteira para retirar a bagagem e fui puxar papo, já pensando em dividir o táxi até o centro.

Seus nomes eram: Ivan, um italiano de Nápoles e Vincent, neozelandês. Ambos bastante receptivos e gente finíssimas, ficamos conversando sobre o que seria Cuba, enquanto esperávamos pelas bagagens.

Depois de um tempo chegou a minha mochila e também a do Ivan, mas a mochila do Vincent extraviou, ficamos então tipo uma hora no aeroporto, até que ele desencanou, fez a queixa e pegamos o tal táxi.

Acabei não indo na para o hostel que havia reservado e segui junto com eles para uma casa particular que aluga quartos. Essa é uma maneira muito comum e barata de se hospedar em Cuba. As pessoas são autorizadas pelo governo a alugar quartos ou camas, como no caso do hostel e pagam uma taxa fixa ao governo que é de acordo com a quantidade de quartos ou camas alugados.

A moeda em Cuba funciona assim: existe o Peso Cubano e o CUC – Peso Cubano Convertível. Teoricamente, o CUC seria uma moeda para turistas enquanto o Peso Cubano para os cubanos, mas na pratica qualquer pessoa pode usar as 2 moedas e gastar a moeda que for mais conveniente na ocasião. Há alguns comércios que não podem trabalhar com Peso Cubano, e outros que não podem com CUC mas a maioria aceita os 2.

1 CUC vale 1 dólar americano e/ou 25 Pesos Cubanos.

Um profissional qualificado como um médico, professor universitário etc. tem em média um salário de 22 (vinte e dois) CUC por mês, o equivalente a 22 dólares e falarei disso mais abaixo.

Chegando à tal casa, havia uma cama disponível para mim, então fiquei por lá mesmo. Pagamos 10 dólares cada um pela noite, na casa de uma psicóloga de uns 55 anos.

Conversamos bastante com ela e foi legal já na primeira noite, ter uma visão de como são as coisas. Ela fez intercâmbio na Rússia, vive bem tranquila em Havana e está de acordo com o sistema que o país segue. Já o filho dela de 26 anos, que também estava lá, não está tão feliz assim com o sistema.

Passamos a noite toda conversando. Já bem tarde o rum acabou e fomos à rua comprar mais. Em plena madrugada tivemos uma impressão do que é a segurança em Cuba. O país é 99,7% seguro para turistas. Pude comprovar isso nos outros dias caminhando sozinho pelas outras cidades em plena madrugada, com minha câmera nas mãos tirando fotos pra todo lado.

O que faz esse país ser seguro para turistas? Cuba tinha um apoio enorme da ex União Soviética, que quando se dissolveu deixou o país meio na mão. Quem suporta o país hoje é o turismo, então a polícia é bem atuante e dura nesse sentido.

Se um cubano se envolver em uma briga ou qualquer confusão com um turista, ele vai ter problemas sérios, que podem até se estender à sua família. O que é um ponto fraco em minha opinião.

Para ilustrar, estávamos o italiano, o neozelandês e eu caminhando à noite e conhecemos uma alemã que namora um cubano. Estávamos conversando os 5 quando uma viatura parou, desceram 2 policiais, pegaram a identidade do cubano, ligaram pra central da polícia e passaram todos os dados dele. Depois falaram para ele: “temos todos os seus dados, se alguma coisa acontecer a qualquer um deles, nos iremos atrás de você”.

Essa situação é muito chata, faz com que muitos cubanos não falem com turistas. Alguns evitam contato com outras pessoas para não ter problemas e embora torne o país seguro para turistas, é muito opressor.

A despeito disso conversei com vários cubanos e cubanas em vários lugares e foi muito, muito interessante.

Um outro ponto negativo e bem latente em Cuba é a situação das mulheres. É muito grande o número de mulheres em Cuba que faz programa com turistas. Elas não são ”prostitutas profissionais” por assim dizer. Elas não fazem programas com Cubanos, só com turistas.

É uma maneira de ganhar dinheiro. Um programa gira em torno de 30 CUC. Lembre-se que um médico ganha 22 por mês.

Acontece muito de você estar em um bar e ser assediado por essas mulheres, que lá são chamadas de Gineteiras.

"No prostituicion, si sexo grátis"
“No prostituicion, si al sexo gratis”

Tirando as coisas ruins, só coisa boa.

Um beneficio totalmente grátis em Cuba é a saúde. Qualquer exame médico, por sofisticado e caro que possa ser, será feito no mesmo dia ou o mais rápido possível e sem nenhum custo para o paciente. Os remédios e todo o acompanhamento médico também saem de graça.

Cuba tem também um incentivo à educação muito forte, basicamente quem quiser fazer faculdade terá uma boa universidade para estudar e totalmente grátis. As opções de cultura também são inúmeras e muito baratas. Um cinema custa 2 Pesos Cubanos ou R$0,15 (quinze centavos de real). Teatro é o mesmo preço. Escola é grátis, faculdade grátis, etc. Esse benefício de estudo também se estende para estrangeiros, conheci umas mulheres do Uruguai estudando lá, e também alguns brasileiros, que foram parar lá através de contatos com o MST.

As uruguaias foram as que tive mais contato e elas me contaram bastante sobre o que é viver em Cuba e também a visão de quem vem de fora e mora lá.

Cuba é um pais muito fértil em música, vê-se muita gente na rua tocando muito bem vários instrumentos. Ouve-se vários estilos mas o ponto forte mesmo é a salsa, seguido pelo jazz.

Passei por praticamente todo o Caribe nessa viagem, e não vi ninguém tocar, muito menos dançar, salsa como os cubanos. Eles movem partes do corpo que eu nem sabia que eram desconectadas. As mulheres são bonitas e sensuais demais, dançando então, nossa senhora.

Lá você também vê que Buena Vista Social Club é muito bom mesmo, mas é apenas mais um, e que ha vários outros tão bons quanto ou até melhores.

Nos finais de semana à noite pela Malecon (avenida beira-mar) as pessoas param no calçadão e ficam por ali bebendo, conversando e tocando instrumentos, cantando, dançando e socializando. Vêem-se grupos que seguramente tem formação erudita tocando pelas ruas na maior alegria.

No geral os cubanos são bem alegres e se parecem muito com nós brasileiros. Despreocupados, festeiros, são bem curiosos a respeito do Brasil. Eles tem uma vida simples, tudo que é primeira necessidade é provido pelo governo, mas qualquer supérfluo é bastante difícil de se conseguir.

Passamos 3 dias pela capital conhecendo lugares e pessoas fantásticas. Mudamos de hospedagem para uma mais perto da Malecon e lá ficou mais fácil da gente se locomover. Um ônibus local custa R$0,05, mas a gente pegou uma vez só. Andamos bastante a pé pelas ruas de Havana.

Ônibus americano em Havana
Ônibus americano em Havana

A cidade é bonita e parece que está em ruínas, o que a deixa mais charmosa.

Havana
Prédios antigos dão charme a Havana

Nessa minha rápida viagem eu passei pelas cidades de:

Havana, capital, maior cidade, orla muito bonita, carros antigos para todo lado, muita cultura, festas e é o coração de Cuba. É de longe a mais importante, a mais bonita e a mais intensa. A cidade respira até hoje a revolução e as Casas de la Música são fantásticas com shows excepcionais. Sem falar na vista da Malecon, com as ondas invadindo a rua que é maravilhosa.

Malecon, orla de Havana
Malecon, orla de Havana

Matanzas, cidade interessante, tem muita coisa de folclore afro-cubano e é a porta de entrada para Varadero, considerada uma das praias mais bonitas do mundo.

Matanzas
Pôr do Sol em Matanzas

Santa Clara, o santuário de Che Guevara. Aí estão seus restos mortais, museus, além de ser uma cidade universitária bem interessante com vida noturna bem intensa voltada para atividades culturais.

Imagem de Che Guevara nas ruas de Santa Clara
Imagem de Che Guevara nas ruas de Santa Clara

Cienfuegos, cidade muito bonita e por lá se vê cubanos com bastante dinheiro. Vi uma marina com veleiros bem consideráveis com bandeirinha cubana. Tem iate clube, jockey, etc.

Cidade de Cienfuegos
Cidade de Cienfuegos

Em toda casa que fiquei hospedado tinha uma estrutura bem razoável; o quarto era suíte, tinha ventilador/ar condicionado e era bem limpo e seguro. Tinham internet disponível por  5 CUC a hora, tv LCD, etc.

Pelo que entendi, eles tem que seguir certos padrões de serviço. A casa tem um controle grande do governo e um adesivo na porta indicando que ela está credenciada a alugar quarto ou cama.

Pode se ver uma diferença enorme em Cuba entre pessoas que alugam quarto para estrangeiro e quem não aluga.

Quem aluga tem uma renda muito maior porque geralmente é 10, 12 dólares por pessoa por noite.

Imagino que paguem muito imposto sobre isso, mas certamente sobra muito mais dinheiro e se quem vive lá com 22 dólares ao mês consegue, pra quem aluga então deve ganhar umas 10 vezes isso.

Tem um lado não tão glamouroso nisso. Eu vi engenheiros que abandonaram o trabalho para ficar em casa alugando quarto.

Conheci também um neurocirurgião que dava aula na faculdade de medicina, mas abandonou e hoje vive de alugar quartos em sua casa.

Havia também outros e claramente não é saudável para um país quando muitas pessoas qualificadas abandonam suas profissões de origem em busca de uma outra mais rentável.

E a tendência é cada vez mais acontecer isso, vi mais pessoas arrumando suas casas, para se enquadrarem no perfil e poder alugar quartos para turistas e ganhar muito mais dinheiro.

Com o tempo pode acontecer das pessoas não mais se dedicarem ao estudo e em vez disso construirem mais quartos porque dá muito mais dinheiro.

Quando digo que ainda não digeri, é porque não sei o que pensar por exemplo a respeito de ser pobre no Brasil se é melhor. Pela liberdade sim, sem sombra de duvidas, e também pela possibilidade de se mudar de classe social. Mas uma pessoa pobre no Brasil que pensa em fazer faculdade de medicina por exemplo, vai penar e muito para pagar. Se precisar de um mega exame na saúde publica então, esquece, enquanto em Cuba se faz até transplante de graça.

Por outro lado, se um cubano quiser conhecer um outro país, ele não terá um impedimento legal mas em condições normais ele jamais terá dinheiro para comprar a passagem e se manter fora de Cuba.

Conversei com alguns cubanos mais jovens e o sonho deles é viajar, conhecer outros lugares e pela falta de dinheiro não é possível.

Por último, vou contar uma grande experiência que eu tive lá.

Caminhando pelas ruas de Havana um dia com o italiano e o neozelandês, notei uma mulher tentando passar por nós, eu dei passagem ela sorriu e agradeceu em inglês, caminhou mais 2 metros, olhou pra trás e sorriu de novo.

Ela foi simpática, então caminhei até ela e puxei papo. Conversamos um pouco em inglês e perguntei de onde ela era. Ela respondeu que era de Havana mesmo. À partir daí começamos a conversar em espanhol.

28 anos, mulher muito gente boa, simpática e é professora de filosofia na Universidad de Havana. Fomos conversando um pouco mas ela tinha que ir, então me deu o telefone para que combinássemos algo depois.

No dia seguinte liguei para ela e combinamos de encontrar perto da Universidade. De lá saímos conversando passando por toda a orla de Havana. Fomos a cafés e museus, igrejas e ela me contando bastante como era a vida em Cuba e o que ela ouvia dos alunos em suas aspirações.

No meio da conversa, ela me contou que o pai é diplomata e estava trabalhando no Quênia mas acabara de voltar para Cuba. Esse dia foi bem longo e proveitoso, aprendi um monte de coisa sobre Cuba, inclusive algumas coisas insider.

Seguindo a linha, um diplomata ganha em torno de 25 CUC por mês. Mas tem um monte de ajudas de custo e incentivos.

Ela pareceu ter mais dinheiro que a média, pude ver isso pelo celular Samsung Galaxy dela, e também pelo laptop Sony Vaio. Ela ainda fez mestrado na Alemanha e passeou por uns 2 ou 3 países pela Europa. Não entrei no detalhe de como fez isso não, mas tem famílias cubanas com dinheiro também, e a dela parece ser o caso.

Cuba foi de longe o lugar que mais me impressionou nessa viagem. Recomendo muitíssimo uma visita ao país, e que definitivamente se hospede nas casas de família, onde poderá conversar com a gente de lá e ter uma visão mais autêntica do país.
Hospedar-se em um hotel vai ser apenas mais do mesmo.

Sigo pensando a respeito, tentando digerir o que é o pais de verdade. Ainda vai levar um bom tempo, mas como todo lugar, tem muita gente que apoia o sistema fervorosamente e muita gente também que não suporta mais e tudo que quer é que o sistema mude, ou sair de lá.

Temo que nos próximos 7 anos venha a ter uma Hard Rock Café Havana e/ou Starbucks.

Tomara que não.


Encontros

A trilha sonora deste post é Encontros e Despedidas, de Milton Nascimento. Ouça e assista:

Toda jornada é um movimento em direção ao outro: o encontro é conatural ao viajar. O encontro com outras pessoas, com outras culturas, com outros ambientes, com outras paisagens: enfim, o encontro com a alteridade. Uma alteridade que pode apenas nos confirmar, fortalecendo por meio da afirmação de nossa (aparente) diferença nossas certezas, hábitos, conceitos e comportamentos, mas que pode também pôr-nos em jogo, provocar-nos, instigar-nos a sair (pelo menos em parte) de nossos reflexos, nossas maneiras usuais de ser, de pensar e de agir, enriquecendo nossa humanidade.

Esse abalo criativo só acontece, porém, quando ao deslocar-nos para outros lugares adotamos um espírito viajante, uma atitude de abertura receptiva para o mundo à nossa volta; quando suspendemos temporariamente (ou ao menos tentamos suspender) nossos julgamentos, nossos pressupostos (os dos quais temos consciência), nossas tendências – aparentemente espontâneas, mas que na verdade são um produto em constante (re)construção de nossa biografia e nossa interações – sensoriais, perceptivas, cognitivas e comportamentais.

Viajar é sempre uma oportunidade para encontros transformadores
Viajar é sempre uma oportunidade para encontros transformadores

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O Vagamundo: No fim da viagem está o horizonte

Olá viajantes! 

Hoje já estou no Velho Continente, mas como disse, não esqueci de vocês. E como em toda segunda terça-feira do mês, hoje é dia da coluna O Vagamundo por Antonino Condorelli. 

Na crônica deste segundo post de O Vagamundo, Condorelli conta sobre um episódio na Cuba de 1997, onde pela primeira vez sentiu o medo da morte de perto. 

As fotos, Antonino explica que foram feitas em câmera analógica e devem estar em algum baú empoeirado na casa de seus pais em Florença, na Itália. Conseguimos pelo menos uma. 

Façam uma incrível viagem!

Leia o segundo post de “O VAGAMUNDO”: No fim da viagem está o horizonte”.


No fim da viagem está o horizonte

Antonino Condorelli
condor_76@hotmail.com
@el_condor76

Complemente em O Condor Errante – Anotações de um viajante: Cuba, 1997 – Leia

A trilha sonora deste post é Al final de este viaje. Letra e música: Silvio Rodríguez. Ouça e assista:

Camino a la Comandancia de la Plata 1997: Sierra Maestra, Cuba, 1997
Camino a la Comandancia de la Plata 1997: Sierra Maestra, Cuba, 1997

Tenho sido quase sempre um viajante solitário, mais por necessidade do que por escolha. Minha primeira viagem de mochila fora da Europa, porém, a fiz aos vinte e um anos junto a um amigo, então colega na universidade. Às vezes ter alguém ao seu lado para compartilhar suas angústias faz uma diferença enorme. Daquela vez, porém, o medo ficou entalado em minha garganta, apesar de ter perto de mim um bom amigo que falava minha língua e uma família inteira que se esmerou em cuidados, atenções e preocupação. Eu mesmo me neguei a aceitar o medo, a dar-lhe um nome: tentei afugentá-lo, sufocá-lo, reprimi-lo, me recusei a enxergá-lo nos olhos… mas não consegui expulsá-lo das minhas entranhas, que – como sempre – falaram mais alto. Não consegui expulsá-lo porque me confrontou com o mais temido de meus fantasmas: o da morte… a minha… um pensamento com o qual, mesmo tantos anos depois, ainda não consigo lidar com serenidade, até o ponto que escrever, pronunciar ou pensar naquela palavra me desperta um leve, mas incontrolável calafrio. E uma das vezes em que mais me senti de cara com ela, mesmo que na ocasião me negasse a admiti-lo, foi numa província remota da maior ilha do Caribe, no igualmente remoto – nesta época de aceleração frenética da existência – final do século passado, mais exatamente em 1997.

Naquele ano fiz uma viagem de quase três meses por Cuba. Junto ao amigo que dividiu as agruras e as alegrias daquela experiência, percorri quase todas as quatorze províncias da Isla Grande de trem, ônibus e pau-de-arara (na época – hoje já não sei – o meio de transporte mais utilizado pelos cubanos e o mais barato), hospedando-me nas casas de amigos e amigas conhecidos por correspondência (sim, bem antes do Facebook e do Twitter, aliás antes mesmo de ter uma conta de e-mail e de começar a frequentar salas de bate-papo tinha amigos espalhados pelo mundo) ou em pousadas econômicas. Tratava-se de um reencontro: no ano anterior tinha estado na ilha de Fidel Castro integrando uma brigada internacional de trabalho voluntário, organizada pela Associação de Amizade Itália-Cuba, mas em um mês de estadia tinha convivido mais com outros italianos e com os espanhóis, portugueses e franceses das brigadas gêmeas do que com cubanos e, nas raras brechas na cortina ideológica que aquele ambiente tinha construído ao nosso redor para impedir que enxergássemos com nossos próprios olhos a vida do país, tinha entrevisto um universo muito mais rico, denso, problemático, complexo, multicolorido e intrigante daquele que queriam que percebêssemos.

Por isto, tinha dado uma fugida de alguns dias para uma província do interior enquanto meus colegas cortavam cana e colhiam café e tinha ficado em Havana uma semana a mais depois dos companheiros da brigada voltarem para a Europa, mas não me pareceu suficiente. Tinha sido o bastante para me desencantar completamente com o regime castrista, que antes denominava poeticamente de “A Revolução”, e para acabar com minhas antigas idealizações românticas de guerrilhas e ditaduras tropicais de esquerda. Mas queria mais: sentia a necessidade de mergulhar de cabeça na ilha, de vivê-la em suas múltiplas faces, de estar próximo de seu povo e partilhar do mesmo pão. No episódio que estou prestes a contar esse pão acabou quase me matando, mas foi justamente a convivência íntima com o povo cubano e a aceitação plena de sua forma de viver que me salvaram.

Estávamos rodando pela ilha há mais de um mês e naquele dia saímos de Santiago, a segunda maior cidade do país, que ostenta um rico – tão sugestivo quanto mal-cuidado – patrimônio histórico colonial e uns instigantes miscigenação cultural e sincretismo religioso, característica de toda a parte oriental de Cuba, que a torna um efervescente cadinho de cores, cultos, visões de mundo e estilos de vida. Na noite anterior tínhamos voltado exaustos de uma excursão ao interior da província; meu amigo só queria tomar um banho – que iria ser de cuia, pois naquela época nas cidades cubanas faltava água até quatorze horas por dia – e dormir, mas eu estava faminto e fiz questão de comer alguma coisa no primeiro restaurante popular – isto é, para cubanos, pois havia uma divisão bem marcada entre os estabelecimentos em dólares, frequentados quase exclusivamente por turistas estrangeiros, e os em pesos, destinados aos nativos – que encontramos aberto. Ainda lembro que o único que ofereciam era um picadillo, uma sorte de sarapatel feito com miúdos de não sei qual animal, nem me importei em perguntar. Na manhã seguinte acordamos cedo porque, supostamente, nosso ônibus sairia às seis da manhã, embora – já estávamos acostumados a isso – acabou deixando Santiago por volta das dez, pois não tinha chegado ainda na hora prevista para a saída. Nosso destino era a província de Bayamo, no Sudeste de Cuba, a mais pobre do país, e concretamente a pequena cidade de Manzanillo, onde iria reencontrar uma velha amiga por correspondência e sua família, que já tinha conhecido pessoalmente na minha viagem do ano anterior.

Na primeira parada que o ônibus fez para que os passageiros fossem ao banheiro e lanchassem, comecei a sentir certo mal-estar no estômago e, improvisadamente, uma correnteza violenta empurrou a comida mal-digerida do dia anterior para minha garganta e vomitei copiosamente. No momento me senti aliviado e achei que não iria acontecer mais nada, mas foi só chegar a Bayamo – o fim da linha do nosso ônibus – que câimbras violentas começaram a massacrar meu estômago e uma dor de cabeça insuportável me deixou zonzo. O calor tórrido e úmido da região não contribuía para melhorar a situação. Como se não bastasse, o único transporte que havia para Manzanillo era o pau-de-arara e foi nessas condições que enfrentei uma viagem de uma hora e meia sentado no chão da parte traseira de um caminhão – pois os dois bancos laterais estavam lotados de gente – espremido entre outros corpos suados.

A casa da família que nos hospedou em Manzanillo era um barraco de telhado baixo extremamente quente com os vãos separados por cortinas puídas, o interior despojado, os poucos móveis carcomidos pelo tempo e a umidade, fogão a lenha na improvisada cozinha e, o que era dramático para mim no estado em que cheguei, sem água encanada no banheiro. Nada disso era novidade para meu amigo e eu, pois quase todas as residências em que tínhamos dormido até aquele momento eram daquele jeito, apesar de algumas serem de docentes universitários ou, como em Manzanillo, de uma médica recém formada. Contrariamente à maioria dos europeus que visitam a ilha e, por ventura, chegam a conhecer mais de perto a realidade de seus habitantes, aquilo não me indignava nem espantava, aliás me deixava empolgado, pois acreditava – e continuo acreditando – que a simplicidade, a sobriedade deveriam ser atitudes tatuadas nas mentes e nos estilos de vida de todas as classes sociais. (A maioria dos cubanos que conheci não pensava da mesma forma e não gostava de viver daquele jeito, o que é compreensível: no caso deles, não se tratava de uma escolha voluntária fruto de uma tomada de consciência, mas de uma imposição goela abaixo por parte de um poder incontestável). No entanto, quando cheguei a Manzanillo senti falta – pela primeira vez desde que me encontrava em Cuba – de condições de alojamento mais confortáveis. Uma violenta disenteria se apoderou de mim no instante em que pisei na casa dos nossos anfitriões e penei para conseguir esvaziar completamente o vaso sanitário com baldes enchidos por meio de uma bomba situada no quintal da casa, a única fonte de água da residência. Estava ardendo, tomei um banho de cuia gelado e logo depois medi a temperatura: quarenta graus. O diagnóstico da minha amiga médica não demorou: me encontrava, segundo ela, com uma virulenta infecção intestinal de origem bacteriana.

Em 1997, Cuba se encontrava em pleno período especial: uma época de enormes privações que o país sofreu após a queda da ex-União Soviética, que sustentava sua frágil economia. Além disso, Manzanillo era uma cidadezinha do interior da província mais pobre e abandonada da ilha. Nem o posto de saúde mais próximo, nem o hospital onde meus amigos me levaram dispunham de antibióticos para fazer frente àquela emergência. Ao retornar para casa, uma vizinha dos nossos anfitriões teve uma idéia: “Só nos resta o sobao”, disse. Os rostos de todos os presentes, com exceção de mim e do meu amigo, se iluminaram. “Aqui – acrescentou dirigindo-se a mim – quando alguém tem problemas de estômago a solução é o sobao”. Foram então chamar um ancião negro de aspecto risonho, mas imutável, que não pronunciou uma única palavra enquanto permaneceu em nossa presença. O apresentaram como um mestre da medicina popular e nos explicaram que a prática comum em seu meio para aquele tipo de doenças era uma determinada massagem nos tornozelos, apelidada sobao, realizada por esses curandeiros reconhecidos pelo povo, mas não pelas autoridades médicas e políticas do país.

Desesperado, deixei que o curandeiro fizesse a massagem em meus tornozelos, apesar de não cultivar muitas expectativas sobre os efeitos daquela “cura” posto que, em minha maneira – que então era bastante limitada – de ver o mundo, não conseguia enxergar conexão alguma entre aquela massagem e a bactéria que estava afetando meu organismo. Enquanto o velho curandeiro fazia seu trabalho, escutava os comentários dos espectadores ao meu lado: “Ainda bem que ele é de confiança, pois dizem que se não fizer exatamente como é para ser feito o sobao mata”; “Pode crer, conheço várias pessoas que morreram por causa de charlatães que se fizeram passar por curandeiros experientes”; “Pois é, além do mais o paciente tem mesmo é que acreditar: se não tiver fé, de nada adianta”… Tinha câimbras violentas arrebentando meu estômago, náusea, dor de cabeça e estava ardendo de febre; estava sentado numa cadeira de balanço com as pernas para cima enquanto um senhor afro-cubano desconhecido massageava sei lá de que maneira os meus tornozelos e várias pessoas ao meu redor cochichavam de forma plenamente audível que aquilo que estava sendo feito comigo era uma prática perigosa que de não ser bem realizada podia matar… Devo confessar que até aquele momento nunca tinha experienciado de forma tão vívida, tão arrebatadora a sensação de que a minha hora estava próxima e de que, muito provavelmente, estava chegando ao fim da linha. Enquanto o sobao acontecia me ocorreram os versos de Al final de este viaje, uma das minhas músicas favoritas do cantor e compositor cubano Silvio Rodríguez, cujas melodias impregnaram grande parte da minha experiência na Isla Grande.

A massagem durou uma meia hora e, ao terminar, o velho curandeiro fez um sinal da cruz com as mãos à altura do meu estômago. Sem dizer mais nada, cumprimentou os demais com um gesto e foi-se embora. Olhei para meu amigo, que estava tão visivelmente preocupado e angustiado quanto eu. Não confessei para ele, nem para ninguém o que estava pensando e o que temia: aliás, tentava afugentar aqueles pensamentos da minha cabeça e me auto-convencer – sem muito sucesso – de que tudo iria dar certo.

Ao acordar no dia seguinte, por minha enorme e imensamente grata surpresa, estava completamente sem febre e quase sem mais cólicas. Poucas horas depois, estava em plena saúde. Não sei, realmente, o que aconteceu comigo naquele dia. Mas aquela experiência foi um duro golpe a qualquer forma de arrogância e me proporcionou um vislumbre, ainda um tanto indefinido, de uma consciência que anos mais tarde adquirira uma forma clara em minha visão de mundo. Viajando, aprendi que existem muitas maneiras de entender os fenômenos e de interferir neles e todas, desde que beneficiem o homem e os demais seres ou não os prejudiquem, são válidas e legítimas.


Caminhante, são tuas pegadas o caminho, e nada mais

condor_76@hotmail.com
@el_condor76

A trilha sonora deste post é Cantares – Letra: Joan Manuel Serrat e Antonio Machado; Música e interpretação: Joan Manuel Serrat.

Sou europeu e fui adotado pela América do Sul. Ao longo de mais de trinta anos de existência, vivi em três países de diferentes continentes e passei longos períodos em outros dois. Sempre que pude, embora não tanto quanto teria gostado, devido a uma situação financeira sempre instável, fiz longas viagens de mochila pelo mundo. Sempre me senti atraído pelo encontro com o diferente; sempre procurei o deslumbramento, a vertigem, centelhas de significado para a minha existência no contato com outros lugares, outros povos, outras paisagens, no mergulho – embora por períodos breves – em ambientes não-urbanos. Sempre senti um impulso irresistível para o conhecimento e a mestiçagem com outros estilos de vida, com outras maneiras de pensar o mundo e de vivê-lo. Nunca me senti enraizado em lugar algum, sentindo à flor da pele aquela sensação de estrangereidade que Claude Lévi-Strauss, em Tristes Trópicos, assumiu como sua condição permanente, um sentimento de estranhamento constante que o fazia sentir-se estrangeiro em qualquer lugar, inclusive em sua cultura de origem.

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