Para entender a história dos massacres de Cunhaú e Uruaçu, primeiro é preciso conhecer o contexto histórico em que aconteceram. Os martírios ocorreram no século 17, período do Brasil colonial, em que parte do Nordeste brasileiro estava sob domínio holandês (dezembro de 1633 a 1654).
A Capitania do Rio Grande, que ia da foz do rio Jaguaribe (Ceará) até a baía da Traição (Paraíba), incluindo o atual Rio Grande do Norte também fazia parte da colônia holandesa no Brasil. Assim como a Capitania de Pernambuco, onde fica a capital do Brasil Holandês, a cidade do Recife.
O engenho de Cunhaú, a 72km de Natal no atual município de Canguaretama, era o grande produtor de açúcar da região, responsável por 70% do que era produzido no Brasil.
Segundo o Padre Júlio, responsável pela causa dos Mártires na Arquidiocese de Natal, o interesse econômico no engenho Cunhaú foi uma das razões que levaram ao massacre. “O governador da colônia holandesa no Brasil, o Conde Maurício de Nassau, que é tido como um grande herói holandês, deixou um legado grande em Recife, com muitas construções, mas no Rio Grande, o interesse era só de exploração, você não vê nada construído pelos holandeses. Pelo contrário, eles tentam tirar o que nós temos, mudam o nome da cidade, o nome do forte pra tirar a conotação católica”, destaca.
Sob o domínio holandês, Natal passou a se chamar Nova Amsterdã e a Fortaleza dos Reis Magos de Castelo de Keulen, em homenagem a um príncipe holandês. “Os holandeses eram calvinistas e tentaram impor essa religião”, explica padre Júlio.
Naquela época, na Capitania do Rio Grande só existiam duas paróquias. A paróquia de Cunhaú e a de Natal, os padres das duas paróquias foram mortos no massacre, juntamente com mais de uma centena de pessoas.
Cunhaú
O martírio de Cunhaú aconteceu em 16 de julho 1645, na Capela de Nossa Senhora das Candeias, no Engenho Cunhaú. Era um domingo, dia de Nossa Senhora do Carmo e missa estava lotada.
A serviço do governo holandês, o alemão Jacob Rabbi mandou publicar um edital dizendo que após a missa teria um comunicado importante do governo holandês. “As pessoas acreditaram que seria a liberdade religiosa. E a coisa foi tão traiçoeira que não se esperou nem terminar a missa. Quando o padre estava na hora da consagração, Jacob Rabbi, com os índios e os soldados holandês, fecharam as portas e começaram a matar”, conta padre Júlio.
De acordo com padre Júlio, os holandeses davam a oportunidade dos presente na missa, “salvarem a vida”, bastava só que eles dissessem que renunciavam à fé católica e que assumiam a fé calvinista. “Só que as pessoas não aceitaram isso. Disseram que preferiam morrer a perder a fé. O padre André de Soveral exortava a todos que naquele momento fizessem seu exame de consciência, pedissem perdão, foi um espécie de confissão comunitária”, acrescenta.
Em Cunhaú, foram mortas quase 80 pessoas, só se sabe apenas os nomes do padre André de Soveral e do leigo Domingos de Carvalho. Por isso, apenas esses dois mortos no massacre de Cunhaú serão canonizados, juntamente com outras 28 pessoas de Uruaçu. “A igreja não proclama santos se ela não tiver pelo menos uma identificação. Um exemplo é o caso da filha de Antonio Vilela, também morta no massacre. Não se sabe o nome dela, mas se sabe que era a filha de Vilela”, justifica padre Júlio.
Uruaçu
Depois do massacre em Cunhaú, o Padre Ambrósio Francisco Ferro, que era o pároco de Natal, chamou os fiéis para se refugiarem no Forte dos Reis Magos. “Acreditava-se que os holandeses na capital teriam outra mentalidade, como a gente pensa ainda hoje e, durante 2 meses, eles estiveram seguros. Até que no dia 3 de outubro chegou novamente Jacob Rabbi. Mas você pode perguntar, eles acreditaram na palavra dele? Talvez eles não soubessem quem era, naquele tempo, não tinha foto, não tinha Whatsapp, Facebook para descobrirem quem ele era. Então, chega esse homem lá dizendo que veio em nome do governo holandês para levá-los para um lugar mais seguro, que está sabendo que o forte será invadido. Eles acreditam e entraram nos barcos que navegaram pelo rio Uruaçu”, relata padre Júlio.
Naquela época, Uruaçu não era uma localidade, apenas um rio, ao chegar no local onde hoje existe um monumento aos Mártires, a 30 km de Natal, no atual município de São Gonçalo, Jacob Rabbi mandou todos descerem dos barcos e as pessoas perceberam que se tratava de uma emboscada. “Ele manda todos tirarem as vestes, ficarem de joelhos, e vai perguntando de um a um se querem renunciar a fé católica, os que dizem que sim, são poupados, os que dizem não, são mortos de maneira muito cruel. Crianças são partidas ao meio, outras pessoas têm braços decepados, pernas decepadas, cabeças arrancadas, também as línguas foram arrancadas para que eles não rezassem, não cantassem louvor. Com o padre Ambrósio Ferro fazem coisas terríveis, arrancam a língua e os órgãos genitais, para colocar na boca, no lugar da língua, e atentar contra o pudor do padre”, detalha padre Júlio.
Em Uruaçu, mais de 150 pessoas foram mortas. Também no Forte dos Reis Magos foram mortos João Martins e 7 amigos. “Quando chega a vez dele (João Martins), os soldados dizem que se ele renunciar a fé, não só poupará a vida, como será oficial do exército holandês. E ele disse: Dá-me até vergonha ainda estar vivo quando vejo o sangue dos meus amigos derramado na terra, matem-me logo pelo Cristo. Essa também é uma profissão de fé”.
O padre conta ainda que em Uruaçu, o leigo Mateus Moreira tem o coração arrancado pelas costas. “Eu costumo fazer uma comparação que quando a gente está com a unha do dedo mindinho encravada e bate na quina do guarda roupa, a gente não chama nem o nome de Jesus e diz o que não deve. Mateus Moreira, com o coração arrancado pelas costas, no período que não existia anestesia, diz: ‘louvado seja o Santíssimo Sacramento’. Por isso ele é o padroeiro dos ministros da comunhão eucarística do Brasil”.
Dos 150 mortos em Uruaçu, 28 foram identificados e também serão canonizados. Os novos santos serão chamados da seguinte maneira: André de Soveral e Ambrósio Francisco Ferro, presbíteros, Mateus Moreira leigo e seus 27 companheiros no martírio de Cunhaú e Uruaçu.
Dos 30 que serão canonizados, dois não tinham nacionalidade brasileira, o padre Ambrósio Francisco Ferro, que era português e João Navarro, que era francês. Mas ambos moravam na capitania do Rio Grande.