Antonino Condorelli
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A trilha sonora deste post é El Hombre y la Tierra de Geronación. Ouça e assista:
http://www.youtube.com/watch?v=haPgqL6Ff24
El hombre es tierra que anda (Provérbio Inca)
Um dia, de repente, me senti muito mais do que um habitante da Terra… A senti pulsar em minhas veias, vibrar em minha pele, dançar em meu corpo; a senti impregnada em cada uma das minhas células, esculpida em cada dobra da minha psique. Me senti Terra que pensa, que sente, que ama, que chora, que ri, que edifica e destrói. Por alguns fugazes instantes deixei de me perceber como um hóspede, um viajante, um corpo estranho projetado pelo acaso na superfície deste planeta… Naquele relâmpago epifânico, me experienciei como um filho da Terra que jamais cortou seu cordão umbilical, apesar de nunca tê-lo percebido; me senti uma célula, uma parcela indissociável de um gigantesco corpo vivo, um irmão das rochas, das árvores, das nuvens, dos rios, os lagos e os oceanos; me senti inseparável do vento, da chuva, das folhas, dos vulcões e das geleiras… Naqueles instantes, que não lembro mais se duraram segundos ou minutos, tive um vislumbre simultaneamente corporal e psíquico, racional e emotivo duma experiência que alguns cientistas contemporâneos descrevem com a sugestiva imagem de Géia, deusa grega que encarna a Mãe-Terra, e que povoa o universo mítico de muitos povos como arquétipo da Grande-Mãe, Deusa-Mãe, Pacha Mama, etc.
Como todas as vivências mais intensas e verdadeiras aconteceu inesperadamente, num dia gélido de começo de outono na extremidade austral do planeta, a ilha de Terra do Fogo. Poucos dias antes, tinha entrado nos meus 30 anos e decidido saudar esta nova fase da minha vida da melhor forma que conheço: ampliando meus horizontes através do contato com outras paisagens, outras gentes, outras maneiras de ser e estar no mundo. Naquela época morava em Buenos Aires, onde tinha terminado há pouco um período de intercâmbio profissional, e antes de voltar para Natal, onde finquei minhas raízes, tinha resolvido dar uma volta pelos que alguns gostam de chamar “os últimos confins da Terra”.
Estava atravessando a pé o Parque Nacional Tierra del Fuego, do lado argentino da ilha mais ao Sul do planeta, respirando a plenos pulmões o ar límpido daquela manhã, fascinado pela imponente floresta de lengas e guindos (árvores características do ecossistema fueguino) mergulhados num emaranhado sub-bosque de arbustos espinhosos, e devido ao meu passo deliberadamente lento e pausado os demais caminhantes com quem me encontrava já estavam fora do alcance da minha vista. O dia tinha amanhecido sereno, mas no meio da manhã o céu escureceu repentinamente e logo depois começou a nevar. Em poucos minutos, o caminho na minha frente e o bosque inteiro tinham se tornado um óleo sobre tela com infinitas variações e matizes de branco e de cinza.
Avançava com dificuldade, afundando meus pés numa camada de neve cada vez mais espessa e na lama em que a terra debaixo dela tinha se transformado. O vento jogava rajadas de neve na minha cara cortando-a de frio, molhando e embaçando meus óculos e impedindo-me enxergar nitidamente o caminho. O pânico se apoderou inteiramente de mim, meus músculos enrijeceram-se, sentia o estômago arder-me pelo medo, acreditava que iria vomitar meu coração de tão violentamente o sentia pular em minha garganta. Me senti só, isolado de tudo, em meio a uma natureza hostil e indiferente, fria como aquela manhã que em poucos minutos tinha me jogado nas garras dos meus piores fantasmas.
Respirei fundo diversas vezes, procurei me acalmar racionalmente pensando que só precisava continuar pelo caminho que estava percorrendo, que apesar da neve impedir enxergar muito longe havia apenas que seguir pela pista já aberta no meio do bosque e que em algum momento, mais cedo ou mais tarde, iria desembocar na estrada que me levaria até a saída do parque. Segui em frente com estes pensamentos tranqüilizadores na mente, mas com o corpo inteiramente atravessado pelo medo, que não conseguia dominar, de não ter forças suficientes para chegar até o fim, de me perder no meio da nevasca que poderia apagar a senda e morrer de frio e fome antes de reencontrar o caminho. Naquele momento, podia perceber com absoluta clareza que levava tatuado em cada um dos meus neurônios, em cada célula do meu corpo o contexto urbano em que tinha nascido, me criado e aprendido a lidar com o mundo.
Meus ouvidos, por exemplo, só conseguiam perceber o ruído do vento; se algum pássaro cantasse, se o sub-bosque produzisse algum som que sugerisse a movimentação de algum animal nos arredores, se um galho se quebrasse eu não perceberia, pois minha sensibilidade auditiva direcionava toda sua atenção para um único aspecto daquela situação, o que mais me inquietava naquele momento e também o mais fácil de ser percebido. Minha visão, já embaçada devido à sua dependência dos óculos, só se dirigia para o que vinha pela frente e o que estava imediatamente diante dos meus pés. Não saberia dizer por quantas espécies de árvores passei ao longo da minha caminhada, não estava prestando atenção às diferenças entre elas, às suas características, nem às das outras espécies vegetais com as quais me deparei.
Minha percepção também estava imbuída dos relatos que tinha escutado alguns dias antes, quando tinha percorrido outra parte do parque comodamente instalado no Tren del Fin del Mundo, um trenzinho para visitantes que reconstrói o antigo trajeto do bem mais macabro trem que, entre o final do século XIX e o começo do XX, levava os mais perigosos presos da Argentina inteira para o presídio de segurança máxima, hoje desativado, da Terra do Fogo. No transporte até o presídio, alguns presos – entre os quais havia assassinos em série, esquartejadores, etc., assim como outras espécies de “criminosos” considerados mais “perigosos” ainda pelos poderes políticos e econômicos da época, como anarquistas e líderes sindicais – conseguiam se desvencilhar das correntes e pulavam do trem, fugindo pela mata adentro. Alguns nunca mais foram encontrados, mas os que sobreviviam ao gelo e à fome acabavam se apresentando espontaneamente dias ou semanas depois nos portões do presídio, preferindo o duro destino da cadeia à liberdade nos bosques fueguinos, sobretudo no inverno. Com esses relatos na cabeça, que voltavam à tona teimosamente – por mais que me esforçasse para impedi-lo – durante a minha caminhada, meus fantasmas mais íntimos acabaram reinando incontrastados em meu corpo e meus pensamentos.
Como a neve espessa cobria muitas vezes os sinais do caminho, várias vezes me perdi, desemboquei em becos sem saída que davam para o boque fechado e tive que voltar nos meus passos até reencontrar o lugar a partir de onde tinha tomado a direção errada. Percebia-me separado da natureza, como um objeto estranho projetado de repente em um cenário hostil, apesar de que minhas representações sobre o mundo estavam fortemente influenciadas por leituras de obras da ecologia profunda e de ensaios inspirados na visão da Terra como um sistema vivo. Aquela circunstância fez emergir com força dilacerante uma aparente contradição entre a forma como vivenciava realmente os ambientes não-urbanos e minhas representações mentais sobre eles.
Continuando a caminhada, de algumas brechas entre as árvores vislumbrei o mar e umas ilhotas a distância. Percebi que estava costeando uma praia e, pouco depois, me encontrei nela. Na minha frente desenhava-se um espetáculo que jamais tinha presenciado: uma esplêndida enseada rochosa cravada de arbustos, completamente coberta de neve, acariciada por um mar límpido, sereno, apesar da tormenta que o céu estava desabando na terra, de onde podiam-se avistar algumas ilhas do Canal de Beagle igualmente pintadas de branco. De repente, tão improvisamente como tinha começado, parou de nevar. Estava encharcado, coberto de lama, cansado e ainda com alguns quilômetros de caminho pela frente, mas naquele momento, diante daquela vista tão emocionante e inusitada para mim, onde pela primeira vez via fundir-se neve e mar, nada disso me importava. Me sentei numa rocha, o coração calmo, o corpo leve, respirei serenamente o ar limpo daquela enseada, me deixei acariciar pelo vento que não mais me parecia rachante e, por não sei quanto tempo, com a cabeça esvaziada de pensamentos, apenas olhei e escutei aquilo que estava na minha frente. Havia apenas eu, o mar, as rochas, os arbustos, o vento, a neve e o canto distante de alguns cormorões…
Naqueles instantes, tendo deixado temporariamente de lado meus fantasmas, meus conceitos, meus ritmos, minha lógica, ou – sendo impossível abandoná-los, posto que estão complemente incrustados em meu cérebro e meu corpo – tendo pelo menos atenuado o mais possível a sua influência, pude vivenciar-me como filho, célula, parcela indissociável de Géia. Pude ver e sentir na pele o quanto adotar outro olhar sobre o que me rodeia pode mudar a percepção que tenho de mim mesmo e das demais manifestações da matéria e da vida, ressignificar minhas experiências, enriquecer e ampliar meus horizontes.
Alguns minutos depois daquilo, recuperadas minhas energias, retomei o caminho até a saída do parque, que ainda demorou algumas horas. Lembro que no instante em que cheguei no limiar do bosque com uma estrada, comecei a dançar à beira desta última… não sei mais, hoje, se de felicidade por ter saído vivo daquela aventura ou por mera vontade, pois meu coração estava sereno desde meu encontro com aquela enseada quilômetros/horas antes… e já não percebia uma fronteira tão rígida entre a estrada e o bosque, tendo uma consciência mais nítida de que quem tinha erguido aquela fronteira era a minha própria mente.
Andei pela estrada alguns quilômetros ainda antes de encontrar, finalmente, outros humanos. Perguntei pelo refúgio mais próximo e responderam al toque, bem ali, só que esse “bem ali” era ainda um quilômetro aproximadamente, um percurso durante o qual recomeçou a nevar e o vento voltou a rajar minha cara, mas não me incomodava mais tanto. No refúgio, diante de um suculento cordeiro al asador e uma taça de Malbec aquecendo minhas entranhas, enquanto o fogo da vizinha lareira enxugava minha roupa molhada no corpo, meus pensamentos flutuavam levando-me a outras viagens, a certos devaneios da minha adolescência, à minha recente experiência de vida em Buenos Aires… Depois de almoçar, enquanto saboreava um chimarrão quente, pensei na minha vida no Brasil, onde algumas pessoas estavam me esperando sem saber quando chegaria, pois tinha decidido me presentear para meus 30 anos uma viagem pela Patagônia e a Terra do Fogo sem data para voltar.
Antes de pegar um ônibus de volta a Ushuaia, a capital da Terra do Fogo argentina onde estava hospedado, ainda andei até a Bahía de Lapataia, onde termina a Ruta Nacional número 3, que percorre a Argentina de Norte a Sul. Estava, segundo a placa de entrada na baia, a 3.079 quilômetros de Buenos Aires e a 17.848 quilômetros do Alaska, na outra ponta do continente.
Mesmo que então não tivesse plena consciência disso, aquele dia no Parque Nacional Tierra del Fuego representou uma virada cognitiva em minha vida, pois me mostrou outras formas possíveis de enxergar o mundo e de vivê-lo. Demoraria bastante para voltar a ter vislumbres de consciência semelhantes ao que experienciei naquela manhã de outono num lugar remoto dos últimos confins da Terra.
Para ver algumas fotos de minhas andanças na Terra do Fogo, clique aqui e entre no meu álbum no Flickr.
Veja os posts antigos de O Vagamundo:
Um plácido fim de tarde ao som das ondas – 12 de junho de 2012
No fim da viagem está o horizonte – 8 de maio de 2012
Caminhante, são tuas pegadas o caminho, e nada mais – 10 de abril de 2012