Antonino Condorelli
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A trilha sonora deste post é L’anno che verrà, de Lucio Dalla. Ouça e assista:

– Me sinto como deviam se sentir os primeiros homens, em tempos imemoriais – disse ela.

A pálida, densa carícia da lua – uma lua grávida, de uma redondeza estonteante, mergulhada num céu derramado de estrelas – era o único fiapo de luz a banhar a terra e nossos corpos, reverberando no mar uma esteira que se perdia no horizonte. Uma brisa delicada encrespava levemente as ondas do Atlântico e um silêncio só quebrado por esporádicos cantos de pássaros e, muito raramente, algum motor distante cujo rugido se diluía rapidamente no escuro da noite impregnava os segundos que deslizavam lentos, lânguidos, fazendo-nos esquecer da existência do tempo.

A lua e Rachel, minha esposa

– Não fossem esses barulhos de carros e motos que passam de vez em quando – disse – não haveria diferença nenhuma entre nós e os homens que milênios atrás, pela primeira vez, pararam nesta praia numa noite de lua cheia contemplando o mesmo mar.

Aquele fragmento de mundo, naquele instante, só poderia ter despertado aquela sensação. A praia se abria por trás de uma duna que escondia à nossa vista tudo o que estava além dela: a estrada que cortava a aldeia, as casas dos moradores da vila, os restaurantes e as pousadas… Estávamos suficientemente distantes do resort à beira-mar que deturpa aquele rincão de beleza, não mais visível. Na areia só resquícios de vida nas profundezas oceânicas polidos e trazidos pelo mar, sem nenhum resto humano.

Banhado pela lua em Barra do Cunhaú

Estávamos sós: minha esposa e eu numa praia deserta no coração da madrugada, à nossa frente apenas o horizonte, a lua beijando nossos rostos… o único ruído, fora o uivar da brisa, o quebrar das ondas na areia… o mar, plácido, acalentava nosso olhar perdido nos reflexos da lua em sua superfície.

Lua cheia em Barra do Cunhaú

Não havia outros humanos ao nosso redor e não apareciam aos nossos sentidos quaisquer rastros do nosso tempo. Estávamos perdidos num presente indefinido, que poderia ter sido qualquer tempo. O que teriam sentido naquele mesmo lugar, olhando para o oceano acariciado pela lua, os indígenas que povoavam o litoral potiguar séculos antes? O que teriam sentido os colonos que exterminaram aqueles índios e, depois de se apossarem de suas terras, pôr-lhes cercas e transformá-las em propriedades, povoaram aquele território e, nas noites de lua cheia, olhavam para o mar?

Praia da Boca da Barra deserta de madrugada, quase ao amanhecer

Viajei no tempo permanecendo firmemente ancorado àquele espaço, e ao imaginar-me contemplando aquela mesma cena, idêntica e ao mesmo tempo diferente, cada vez milagrosamente única, me atravessou a vaga intuição de que a gente tem o poder de parar o tempo, de determinar sua intensidade, até mesmo sua duração, desde que consiga agarrar o agora, permear-se de agora.

Ficamos lá, sentados na areia abraçados olhando para o mar, não sei mais quantas horas. Uma garrafa de champanhe fincada na areia, há tempo vazia, era o único elemento do ambiente que por momentos nos lembrava de nosso tempo histórico. Foi o começo de ano que lembro com mais intensidade e me desperta mais saudades.

Aquele lugar perdido por algumas horas num tempo sem começo era um recanto da Praia da Boca da Barra, em Barra do Cunhaú, município de Canguaretama, no litoral Sul do Rio Grande do Norte, a uns 75 quilômetros da capital do estado, Natal, onde minha esposa e eu vivemos. É uma praia extensa que deita seu corpo dourado desde um braço de mar na entrada da Barra do Cunhaú – com águas calmas e límpidas, em cuja outra ponta desponta, por trás de um deslumbrante emaranhado de manguezais, uma branca restinga – até o início de outra praia mais comprida, a do Pontal com suas piscinas naturais que se revelam na maré baixa. Foi num ponto qualquer desse segundo trecho da Boca da Barra, trecho de mar aberto que de dia é açoitado por ventos fortes e ondas grandes, mas naquela noite estava sereno, voluptuosamente relaxado, que viramos o ano algum tempo atrás.

Braço de mar, Barra do Cunhaú
Barra do Cunhaú, navegando até a restinga
Barra do Cunhaú, do outro lado da restinga

Chegamos de ônibus naquele mesmo dia e paramos na rústica, mas agradável – e acessível para os nossos bolsos – pousada de um holandês a poucos metros de um trecho da Praia do Pontal. Cedemos à tentação de comprar entradas para o Réveillon que iria acontecer no resort de um sueco na Boca da Barra, com acesso direto à praia, para evitar ficarmos totalmente sós. Levamos nossa própria garrafa de champanhe e foi só entrar no resort e reparar na música ao vivo que invadia o ambiente – baste dizer que na hora que chegamos estavam tocando Saia e Bicicletinha de Calcinha Preta, enquanto casais suecos dançavam deslumbrados sem entender nada da letra – que, no mesmo instante, decidimos descer para a praia e ficarmos lá, sozinhos, a uma boa distância de tudo aquilo, que ficou apenas visível e só levemente audível para que soubéssemos quando iria tocar a meia-noite.

Foi a primeira e até hoje a única virada do ano que minha esposa e eu passamos completamente sós… e, para mim, a mais bela e intensa que já vivi. Quando escutamos que era meia-noite destampamos a garrafa, que jorrou em cima de nós uma boa dose de champanhe – dizem que dá boa sorte – e bebemos o resto enquanto pulávamos, brincávamos e andávamos pela praia solitária nos afastando cada vez mais do mundo, não fossem os fogos que vinham da vizinha Baia Formosa que nos acompanhavam desde o céu, onde iam traçando desenhos multicoloridos. Minha esposa fez questão de pular as tradicionais sete ondas em homenagem a Iemanjá, pedindo sorte à orixá rainha do mar.

Por volta da uma da madrugada os fogos tinham acabado e nenhum ruído riscava mais a casca da noite. Nos resorts, nas pousadas e nas casas as pessoas deviam estar levando suas festas noite adentro, mas a praia estava completamente deserta, só iluminada pela luz da lua e qualquer indício de presença humana, qualquer rastro de tempo histórico ficava escondido pelas dunas e a distância.

Levemente ébrios fincamos a garrafa na areia, nos sentamos do lado dela e. abraçados, às vezes conversando, a maior parte do tempo simplesmente olhando para o mar e o horizonte, sentindo a brisa nos acariciando, permanecemos lá horas, até quase o amanhecer, sem pressa para voltar, sem compromisso de felicidade forçada algum, apenas vivendo aqueles instantes, vivendo nosso estar juntos, vivendo o cheiro do mar. Tinhas uma decisão muito importante a tomar nos dias seguintes, antes de voltar a Natal e ao cotidiano, mas a indecisão não me angustiava, não naquele momento.

Piscinas naturais na Praia do Pontal, Barra do Cunhaú

Quando um novo ano começa costumamos projetar-nos para o amanhã, mover nossos pensamentos para um indefinido depois, criar expectativas e esperanças, fazer planos e promessas… e, durante os 365 dias sucessivos, continuamos fazendo-o, alimentando um círculo infinito. Naquela virada de ano, a única da minha vida em que isso aconteceu, não pensei no depois, nos meses que viriam, nas possibilidades, as oportunidades, os perigos que apresentariam. Apenas vivi aquele momento, um momento dentro e fora do tempo, que me pareceu encerrar todos os outros.

Restinga da Barra do Cunhaú

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Insignificância e poder: o homem diante do sublime – 13 de novembro de 2012

No coração do lago, entre selvas e vulcões – 11 de setembro de 2012

Certa história de amor ou como viajar alimenta a criação – 14 de agosto de 2012

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Um plácido fim de tarde ao som das ondas – 12 de junho de 2012

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