Antonino Condorelli
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A trilha sonora deste post é Dale una Luz do Dúo Guardabarranco, composto pelos irmãos Salvador e Katia Cardenal. Ouça e assista:
Escrever o post Os últimos confins da Terra, que narra uma aventura que vivi no outono de 2006 no Parque Nacional Tierra del Fuego, me despertou o desejo de compartilhar com os leitores deste blog outras experiências de mergulho em ambientes não-urbanos que deixaram pegadas indeléveis em minha forma de ver e estar no mundo. Deixem-me, então, contar-lhes mais uma dessas experiências: uma vivência que contribuiu fortemente para forjar minha obsessão pelas relações entre o homem e a natureza não-humana, que se tornou o objeto de reflexão mais recorrente em minha trajetória de pesquisador.
Estava viajando de mochila pela Nicarágua, na América Central, e fui passar uns dias na Isla Zapatera, uma ilha completamente coberta de floresta tropical seca – vegetação típica da região do Pacífico mesoamericana – com apenas duas pequenas comunidades humanas, uma em cada uma de suas extremidades, compostas por casas isoladas esparsas entre as colinas e os bosques. É a segunda maior ilha do imenso Lago Cocibolca, o segundo maior das Américas, um autêntico mar interno separado por uma faixa de terra de apenas vinte quilômetros do Oceano Pacífico. Em outras eras geológicas era um braço de mar e, quando a terra o fechou tornando-o um gigantesco lago, os tubarões que ali permaneceram adaptaram-se ao novo ambiente, reproduziram-se e deram origem à única espécie no mundo de tubarão de água doce. Constelado de ilhas e ilhotas de origem vulcânica, na sua margem norte-ocidental o lago vê erguer-se a delicada silhueta do vulcão Mombacho, com quatro crateras ativas, inteiramente coberto por uma manto de bosque nuvoso berço de uma riquíssimas biodiversidade.
Cheguei lá após uma viagem de duas horas de lancha desde um cais de Granada, uma triste cidade colonial abandonada ao turismo de massa, essencialmente norte-americano e amiúde sexual, antigo feudo dos conservadores nicaragüenses e que ainda guarda os vestígios de sua rica e sangrenta história… alguns restaurados e bem cuidados, muitos em um estado de lânguida decadência, embora não tão deprimentes como os da Havana Velha, aliás impregnados de um certo charme indefinível, diferentemente dos de sua eterna rival, León, histórico quartel general dos liberais que durante séculos disputou com ela a supremacia política do país, antes que a ditadura de Anastasio Somoza, primeiro, e o sandisimo mais tarde quebrassem esse duopólio político e ideológico.
Tinha chegado ao país que, em sua fronteira Sul com a Costa Rica, saúda o visitante autonomeando-se “Terra de Rubén Darío e de Sandino”, para participar de um seminário internacional sobre projetos de gestão sustentável dos recursos naturais, financiado por uma instituição italiana e que envolvia parceiros nicaragüenses, bolivianos e brasileiros, esses últimos representados por mim. Após uma semana em León e seus arredores, onde aconteceu o seminário e foram realizadas as visitas de campo a experiências locais de desenvolvimento sustentável, passei cerca de um mês perambulando com minha mochila nas costas pela parte ocidental daquele país centro-americano, o segundo mais pobre das Américas depois do Haiti e uma terra de violentos extremos.
Com um território inteiramente constelado de vulcões, muitos dos quais ativos, e alvo privilegiado de furacões e tempestades, a Nicarágua possui uma história de terremotos devastadores (como o que destroçou a capital, Managua, em 1972), de destruições brutais como as provocadas pelo Furacão Mitch em 1998 (que produziu milhares de mortos e danos que ainda hoje afetam a economia do país, além de episódios dantescos como o transbordamento do Vulcão Casitas, na província de León, cuja cratera inundada de água vomitou um tsunami avassalador que varreu do mapa, sem mais nem menos, inúmeras aldeias e comunidades, matando mais de duas mil pessoas… semanas depois, ainda era possível encontrar cadáveres boiando na lama), de sangrentas invasões estrangeiras, ditaduras e guerras civis.
Em seu dia a dia, além de imensas desigualdades e da pobreza quase generalizada, os nicaragüenses convivem – pelo menos na época em que estive lá, em pleno inverno, nos meses de julho e agosto – com uma alternância sistemática, diária, de um sol inclemente que dura até o final da tarde e enxurradas violentíssimas de uma chuva torrencial que inunda ruas, faz desaparecer calçadas, derruba postes e em menos de uma hora, tão rapidamente como começou e deixou as cidades impraticáveis com a água chegando às vezes a roçar os joelhos, desaparece. Por isso, em sua canção Dale una Luz, os cantores e compositores Salvador e Katia Cardenal definem os nicaragüenses como um povo que lutou contra el cielo y contra humanos, muito embora o caráter cordial, gentil e tendencialmente calmo dos habitantes daquela terra não suscite no visitante mal-informado a suspeita de uma tão dramática história. Em compensação, escritores e cineastas de diversos continentes encontraram nessa história rica inspiração, a exemplo – entre vários outros – de Salman Rushdie, que visitou o país em 1986 em plena guerra civil dos contras, movimento guerrilheiro armado e financiado pelos Estados Unidos de Ronald Reagan contra o governo revolucionário do Frente Sandinista de Libertação Nacional, e escreveu O Sorriso do Jaguar, relato daquela experiência; ou de Ken Loach, cineasta britânico que em 1996 filmou no país seu longa Carla’s Song (Uma Canção para Carla), que também tem como tema a violência da época da guerra civil dos sandinistas e dos contras.
Mas voltemos à Isla Zapatera… Fui passar uns dias lá junto a Sandro, um ítalo-suíço que conheci em León – um cooperante que viveu quatro anos na Nicarágua e hoje mora nos arredores de Lugano com a esposa e a filha adotiva nicaragüenses – e Marilú, sua mulher leonesa. Graças a uma articulação dele, pudemos viajar de graça em um barco comunitário, ou seja, uma velha lancha que sai uma vez por semana levando apenas habitantes da ilha, que periodicamente vão até a cidade abastecer suas magras dispensas. A pequena embarcação estava abarrotada de gente, bolsas e sacos de mercadorias, mas seus humildes e risonhos passageiros arrumaram um cantinho para mais três pessoas e suas pesadas mochilas. A primeira hora de viagem foi tranqüila, apesar de um sol implacável torturar-nos sem parar e de um vento impertinente bofetear o tempo todo nossa cara, açoites para os quais a maioria dos habitantes da ilha – cuja pele parecia esculpida pelo sol e o vento – mostravam-se indiferentes, a não ser algum idoso que sofria mais com esses maus-tratos. O Mombacho erguia-se imponente à nossa direita, contemplando a travessia. Logo após superar umas ilhotas que formam uma pequena baia entre Granada e o lago aberto, o barco começou a balançar com cada vez mais freqüência, de forma que várias vezes, antes de que aportássemos, me visualizei como o almoço daquele dia dos únicos tubarões de água doce do planeta. Mas foi só vislumbrar as margens verdejantes da ilha, suas colinas inundadas de uma deslumbrante vegetação, berço de vida e promissora fonte de paz, que meu coração começou a se aplacar.
Deitada no meio do lago, com o vulto da enorme Isla de Ometepe – a maior ilha lacustre do mundo, com dois vulcões ativos em sua superfície – às costas e o viçoso perfil do Mombacho à frente, a duas horas de lancha da cidade mais próxima, sem água encanada e luz elétrica, com pouquíssimos humanos em seu extenso território e totalmente imersa em uma densa selva, de onde vez por outra despontam petróglifos pré-colombianos, a Isla Zapatera representava para mim uma esplêndida oportunidade de afastamento temporário do meu universo de referência, das formas urbanas de organização do espaço e do tempo.
Porém, a ilusão inicial de paz e serenidade durou pouco. Apesar de levar comigo protetor solar, boné legionário, lanterna, repelente em spray e em creme, anti-histamínicos orais, óculos de sol com grau, entre vários outros apetrechos, o primeiro impacto foi um autêntico soco na cara. Um calor úmido e pegajoso despertava-me uma vontade constante de tomar banho, mas tinha pouquíssima água à disposição. Insetos de todo tipo e tamanho pregavam em minha roupa e nas partes descobertas do meu corpo, incomodando-me e assustando-me. O calor insuportável dava muita sede, tinha pouca água mineral disponível e não confiava na água das casas dos nativos, por não ser filtrada. Não havia nada a fazer a não ser caminhar nos arredores do bosque ou sentar em frente ao lago e contemplar a paisagem, tendo como únicas luzes as da lua e dos vagalumes assim que escurecia (evitava usar a lanterna para não descarregar a bateria).
Na primeira noite dormida em uma cama de campanha completamente coberta por um mosquiteiro, que aumentava exponencialmente a sensação de calor tórrido daquele lugar, via escorpiões passeando debaixo da cama ao meu lado; marimbondos enormes rondando o mosquiteiro; vislumbrava vultos e silhuetas de espécies não reconhecidas; escutava sons não familiares na escuridão da cabana; às vezes, sentia vontade de me levantar para beber água ou urinar e tinha medo de fazê-lo, apesar de dispor de uma lanterna, por causa dos animais que vislumbrava na escuridão. Quando uma estrondosa chuva começou a desabar em plena noite, martelando o teto frágil da cabana, a sensação opressiva de calor se fez mais intensa e, pela profusão de novos sons que ouvia e de novas formas indefinidas que acreditava enxergar na escuridão, me parecia que a floresta inteira tinha ido se refugiar lá dentro, deixando-me ainda mais nervoso.
Com isso, pude perceber mais uma vez – como quatro anos antes na Terra do Fogo – o quanto meu olhar sobre a realidade, minhas reações às circunstâncias externas, minhas emoções e pensamentos, meus desejos, minha maneira de viver e organizar o tempo, minha forma de experienciar o mundo levam tatuados os ambientes urbanos nos quais cresci e sempre vivi.
A partir do segundo dia, caminhando na selva para conhecer petróglifos da civilização chorotega, que vivia na costa do Pacífico da Nicarágua antes da conquista européia e usava aquela ilha para cerimônias rituais, a presença de um guia local conseguiu modificar em parte minha estratégia de atenção.
A mudança contínua da paisagem; o incentivo constante do guia para prestar sempre atenção ao caminho e não pisar nos lugares errados; a incrível diversidade de espécies vegetais e animais que a cada momento, inesperadamente, surgiam e sumiam; a exigência de estar totalmente presente para não perder os passos do nativo; aquela multiplicidade de formas, cores, cheiros completamente novos para mim, me confrontando o tempo todo com o inesperado, me despertaram aos poucos uma atenção mais refinada e aguçada. Nos dias seguintes, o que em um primeiro momento tinha me incomodado e assustado não me deixava mais tão rígido e nervoso como no começo, pois minha atitude perante os acontecimentos, minha estratégia de interação com o mundo tinha sofrido certa mudança: a atenção cada vez mais sutil que, pouco a pouco, a exposição ao ambiente no qual estava mergulhado tinha despertado em mim, conseguiu também silenciar pelo menos em parte, por momentos, os ruídos internos que inicialmente me dominavam, muitos dos quais eram exatamente os mesmos que impregnaram minha experiência na Terra do Fogo.
A interação com guias locais e moradores do lugar, cujas atitudes com relação ao ambiente me serviam de modelo e constante incentivo a agir de outras formas – mesmo que conseguisse reproduzir as deles só em mínima parte, pois suas sensibilidades sensoriais eram bem diferentes da minha – contribuiu de maneira significativa para essa minha mudança, que só não foi mais profunda porque minha permanência na Isla Zapatera durou apenas alguns dias.
Não sei se foi coincidência (às vezes parece que laços invisíveis atam os acontecimentos que contribuem para nos moldar), mas na primeira noite em Granada após meu retorno da Isla Zapatera esbarrei em um show gratuito ao ar livre, na Praça da Catedral, conduzido por Katia Cardenal e com a presença de vários artistas nicaragüenses de renome no país, cujo propósito era sensibilizar sobre a preservação dos frágeis ecossistemas do Lago Cocibolca e de suas ilhas.
Os dias que passei na Isla Zapatera foram mais uma tessela na composição deste mosaico inacabado, em (re)construção permanente, que experiencia-se como um incorrigível vagamundo.
Veja os posts antigos de O Vagamundo:
Certa história de amor ou como viajar alimenta a criação – 14 de agosto de 2012
Os últimos confins da Terra – 10 de julho de 2012
Um plácido fim de tarde ao som das ondas – 12 de junho de 2012
No fim da viagem está o horizonte – 8 de maio de 2012
Caminhante, são tuas pegadas o caminho, e nada mais – 10 de abril de 2012