Antonino Condorelli
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A trilha sonora deste post é Planeta Sonho, de Flávio Venturini. Ouça e assista:

A primeira sensação que atravessa o nosso corpo quando nos defrontamos pela primeira vez com visões sublimes – no sentido que o filósofo Alain De Botton, inspirando-se em Edmund Burke, atribui à expressão: “o sentimento provocado por certos tipos de paisagens muito grandes, impressionantes e perigosas. Lugares como os oceanos abertos, as altas montanhas, as calotas polares[1]” – é um certo desconcerto, às vezes um calafrio: improvisamente, nos sentimos pequenos, frágeis, insignificantes. Uma cordilheira nevada, um deserto, um oceano, uma selva imensa que se perde no horizonte podem estimular-nos a “aceitar as limitações impostas à nossa vontade[2]” a reconhecer que há energias e exigências maiores do que as que experienciamos como as do nosso “eu”.

Aproximando-se do Glaciar Balmaceda, Província de Última Esperanza, Patagônia Chilena
Aproximando-se do Glaciar Balmaceda, Província de Última Esperanza, Patagônia Chilena

Foi esse turbilhão de percepções o que invadiu minhas entranhas e rastejou em minha pele quando no instante em que me encontrei de frente à Geleira Perito Moreno, no Braço Sul do Lago Argentino, província de Santa Cruz, Patagônia argentina. Era uma sensação em parte esperada, até mesmo pré-saboreada enquanto a van deslizava pela imensa estrada que desde El Calafate atravessava a estepe patagônica da Estancia Anita, perdendo-se no horizonte entre os cumes da cordilheira cobertos de neve perene. Uma estrada que até hoje, em meu sentir, encarna a imagem do viajar: um caminho do qual não se enxerga o fim, que mergulha no horizonte de onde volta a emergir e a perder-se no infinito cada vez que parece ter se chegado a algum lugar, rodeado apenas de céu azul. A vegetação rala de pasto coirón, característica da savana patagônica, varrida por ventos gélidos de até 130 quilômetros por hora – amplificava desmedidamente aquela sensação de imensidão aberta, onde o único relevo em que o olhar esbarrava era o dos vultos ondeantes dos Andes com os cumes envoltos nas nuvens.

Estrada que se perde no horizonte, rumo ao Glaciar Perito Moreno na Patagônia Argentina
Estrada que se perde no horizonte, rumo ao Glaciar Perito Moreno na Patagônia Argentina
Glaciar Perito Moreno
Glaciar Perito Moreno

Tendemos quase instantaneamente, não sei se por levarmos tatuado em nosso inconsciente o imaginário de nossa cultura ou por algum processo psíquico transcultural, a associar imensos espaços abertos à ideia de liberdade. Porém, quando desci da van para tirar a foto que desde então simboliza minha percepção do viajar, a que se ergue como pano de fundo na logo desta coluna, e senti o vento patagônico açoitar minha cara enquanto meu olhar se perdia entre os cumes nevados das montanhas à minha frente, não foi essa a primeira sensação que me permeou. O que senti foi mais um sentimento de reverência e de pequenez, uma desconfortável – mas ao mesmo tempo excitante – sensação de impotência. Uma impotência não deprimente, mas impregnada de vida, carregada de possibilidades. Ao perceber-me minúsculo numa imensidão gélida, me senti ao mesmo tempo parte daquilo tudo: senti que meu destino, de alguma forma que não atinava a compreender, estava ligado de uma forma íntima, quase umbilical ao que me rodeava. Era como se a aparente indeterminação daquele imenso lugar fosse aminha própria indeterminação, que – justamente por não ter um rumo pré-fixado – pode desdobrar-se em qualquer direção.

Na Patagônia, rumo ao Glaciar Perito Moreno
Na Patagônia, rumo ao Glaciar Perito Moreno

Nos dias e semanas anteriores tinha vivenciado experiências semelhantes, na Terra do Fogo e em outras regiões da Patagônia austral, tanto do lado argentino como do chileno. Além de uma vivência ímpar no Parque Nacional Tierra del Fuego-  autêntico divisor de água na minha vida – já descrita em outro post desta coluna, na própria Terra do Fogo tinha escalado parte de uma montanha coberta de neve rumo a uma geleira permanente, o Glaciar Martial, mergulhando numa imensidão branca cuja aparente infinitude só foi quebrada pela improvisa visão do Canal de Beagle abrindo-se diante do abismo.

Rumo ao Glaciar Martial, na Terra do Fogo, com vista do Canal de Beagle
Rumo ao Glaciar Martial, na Terra do Fogo, com vista do Canal de Beagle
Rumo ao Glaciar Martial, nos Andes da Terra do Fogo
Rumo ao Glaciar Martial, nos Andes da Terra do Fogo

Na Patagônica chilena, tinha navegado entre os fiordes da província de Última Esperanza rumo às geleiras Balmaceda e Serrano, deslizando numa pequena lancha entre colinas atravessadas por uma intricado emaranhado de braços do Oceano Pacífico, colinas de cuja superfície brotavam de improviso estrondosas cachoeiras e que escondiam em seus seios imponentes massas de gelos (aparentemente) eternos que iam se mostrando em toda sua magnitude aos poucos, a medida que a embarcação ia se aproximando, ou após trilhas no meio de boques andinos à beira de um dos quais o barco parou.

Navegando entre os fiordes da Província de Última Esperanza, Patagônia Chilena
Navegando entre os fiordes da Província de Última Esperanza, Patagônia Chilena
Glaciar Balmaceda, Província de Última Esperanza, Patagônia Chilena
Glaciar Balmaceda, Província de Última Esperanza, Patagônia Chilena

No dia anterior à minha excursão ao Perito Moreno, tinha navegado no Braço Norte do próprio Lago Argentino – o terceiro maior das Américas após o Titicaca, entre Bolívia e Peru, e o Cocibolca da Nicarágua; um enorme lago andino, inteiramente situado em território argentino, constelado de icebergs de todas as formas e dimensões e com três gigantescas geleiras em sua superfície – e me deparado com as deslumbrantes paredes de gelo dos glaciares Upsala e Spegazzini, assim como percorrido um bosque que desemboca na Bahía Onelli, uma incrível enseada do lago – à qual só se chega via barco e após percorrer uma trilha – rodeada de geleiras e totalmente cravada de rochas e icebergs.

Lago Argentino, Navegando pelo Braço Norte
Lago Argentino, Navegando pelo Braço Norte
Glaciar Spegazzini, Braço Norte do Lago Argentino
Glaciar Spegazzini, Braço Norte do Lago Argentino
Baía Onelli - Lago Argentino, Braço Norte
Bahía Onelli – Lago Argentino, Braço Norte

Todas experiências que merecem narrações a parte que um dia, talvez, escreva. O que tiveram em comum foi que todas tinham me obrigado a confrontar-me com dimensões e forças que sobrepujam nossa vontade, nossas ilusões de controle, de enraizamento no chão, de conforto, de previsibilidade. Diante de certas paisagens, mergulhando em certos espaços nos sentimos – como afirma De Botton – extremamente pequenos, totalmente vulneráveis. Nos percebemos diante de energias aparentemente elementares, invencíveis, indiferentes aos nossos desejos, insensíveis às nossas exigências, energias em estado bruto. Aparentemente, pelo menos…

Bahía Onelli - Lago Argentino, Braço Norte
Bahía Onelli – Lago Argentino, Braço Norte

Era imbuído dessas sensações vivenciadas nas semanas anteriores que observava a paisagem imensa e desolada da estepe patagônica que leva ao Braço Sul do Lago Argentino deslizar pela janela da van, cultivando a expectativa de que em breve iria me deparar com a máxima encarnação, a suprema e mais sublime expressão – pelo menos na Patagônia, por onde estava viajando – desse poder simultaneamente embriagante e avassalador da natureza. Não prestava atenção às conversas em inglês dos excursionistas ao meu lado, trocando só de vez em quando algumas palavras em espanhol com a guia. Mesmo entendendo, fingia não compreender inglês, isolando-me voluntariamente dos demais passageiros, pois me irritavam as conversas sobre suas vidas e trabalhos em Nova Iorque, em Sidney, em Tel Aviv ou em Hamburgo. Me sentia, e me sinto cada vez que saio do meu universo para explorar novos lugares, um viajante e não um turista: não sinto a menor necessidade de trazer para o aqui e agora que estou vivenciando as rotinas, os hábitos, as certezas que deixei para trás (além do fato de que me incomoda falar em inglês quando me encontro em países cujas línguas domino e, portanto, não o faço por princípio). Queria sentir-me na estepe patagônica, a caminho do Glaciar Perito Moreno, mergulhado na paisagem desconcertante que me engolia por todos os lados.

Glaciar Perito Moreno
Glaciar Perito Moreno
Glaciar Perito Moreno
Glaciar Perito Moreno

Quando, finalmente, me encontrei diante da imensidão de gelo que se estende do Campo de Gelo Patagônico Sul (a terceira maior extensão de gelo do planeta, após a Antártida e a Groenlândia, situada na fronteira entre Chile e Argentina) até o Braço Sul do Lago Argentino, um colosso azul em cuja superfície caberia a inteira cidade de Buenos Aires, segunda maior metrópole da América do Sul, e que em 15 de fevereiro de 1877 deve ter desnorteado e embriagado de emoção seu descobridor, o cientista e explorador portenho Francisco Pascasio Moreno, o Perito Moreno, em cuja homenagem a geleira foi posteriormente batizada, o que senti não foi diferente do que esperava e já vinha pregustando no caminho. Aquele oceano sólido de um azul intenso que quase fere os olhos, rodeado de bosques e montanhas e do qual, naquele dia, despontou um arco-íris transformou em uma vivência epidérmica, visceral os sentimentos de beleza e de potência que se apoderaram de mim perante aquela visão, os fizeram escorrer em minhas veias.

Glaciar Perito Moreno
Glaciar Perito Moreno
Glaciar Perito Moreno
Glaciar Perito Moreno

Mas o estrondo improviso provocado pela queda de um bloco de gelo que se desprendeu da sua parede frontal, fenômeno que se repetiu inúmeras vezes nas quase duas horas que permaneci percorrendo de uma ponta à outra as passarelas colocadas em frente à geleira para admirar seu indizível espetáculo e depois navegando por meia hora ao lado de uma das suas paredes laterais, me provocou uma sensação nova e inesperada. Ao sentimento de impotência e fragilidade perante uma energia elementar que já me permeava somou-se e fundiu-se, sem excluí-lo, outro: o de indissolubilidade daquilo tudo que estava vendo e vivendo. Num insight repentino, enxerguei nitidamente em cada queda de um pedaço de gelo, em cada estrondo ensurdecedor que aquilo produzia a minha própria existência: senti que cada uma de minhas escolhas (o que como, o que compro, o que visto, a forma como me locomovo, o que jogo no lixo, o que aproveito e o que desperdiço, o que incentivo), que cada uma minhas ações, que a forma como vivo, penso e atuo onde quer que esteja tem algo de intimamente atrelado, de indissociavelmente ligado à vida do Perito Moreno… e, por conseguinte, à de todas as demais geleiras que já tinha visto e as inúmeras que nunca verei, à dos boques que tinha atravessado e aos que nunca atravessei e atravessarei, à das montanhas, os lagos, as planícies, as estepes, as matas por onde passei, por onde passarei ou por onde nunca chegarei a andar.

Glaciar Perito Moreno
Glaciar Perito Moreno

Diante do Glaciar Perito Moreno, que alguns consideram a “oitava maravilha do mundo”, não me senti apenas pequeno e insignificante, mas simultaneamente – de forma complementar, não antagônica – incrivelmente poderoso: me senti capaz de destruir, de aniquilar a vida orgânica e a matéria não-orgânica (mesmo que inconscientemente) com a simples força de minhas escolhas, com meu modo de ser e de viver. E, por isso mesmo, me senti capaz também de (re)criar a vida e a matéria, de contribuir com sua preservação e crescimento com o mesmo poder: o das minhas escolhas, da forma como penso e vivo. Mais uma aprendizagem ímpar, pois sentida na pele; mais um insight transformador gerado por uma experiência de viagem.

 

Glaciar Perito Moreno
Glaciar Perito Moreno

Veja os posts antigos de O Vagamundo:

No coração do lago, entre selvas e vulcões – 11 de setembro de 2012

Certa história de amor ou como viajar alimenta a criação – 14 de agosto de 2012

Os últimos confins da Terra – 10 de julho de 2012

Um plácido fim de tarde ao som das ondas – 12 de junho de 2012

No fim da viagem está o horizonte – 8 de maio de 2012

Caminhante, são tuas pegadas o caminho, e nada mais – 10 de abril de 2012


[1] Alain De Botton, A arte de viajar. Tradução de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 2003, p. 180.

[2] Idem, p. 180.


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