A trilha sonora deste post é Encontros e Despedidas, de Milton Nascimento. Ouça e assista:
Toda jornada é um movimento em direção ao outro: o encontro é conatural ao viajar. O encontro com outras pessoas, com outras culturas, com outros ambientes, com outras paisagens: enfim, o encontro com a alteridade. Uma alteridade que pode apenas nos confirmar, fortalecendo por meio da afirmação de nossa (aparente) diferença nossas certezas, hábitos, conceitos e comportamentos, mas que pode também pôr-nos em jogo, provocar-nos, instigar-nos a sair (pelo menos em parte) de nossos reflexos, nossas maneiras usuais de ser, de pensar e de agir, enriquecendo nossa humanidade.
Esse abalo criativo só acontece, porém, quando ao deslocar-nos para outros lugares adotamos um espírito viajante, uma atitude de abertura receptiva para o mundo à nossa volta; quando suspendemos temporariamente (ou ao menos tentamos suspender) nossos julgamentos, nossos pressupostos (os dos quais temos consciência), nossas tendências – aparentemente espontâneas, mas que na verdade são um produto em constante (re)construção de nossa biografia e nossa interações – sensoriais, perceptivas, cognitivas e comportamentais.
Podemos ir para o outro lado do mundo, percorrer milhares de quilômetros, entrar em contato com pessoas, culturas, paisagens, estilos de vida totalmente novos e não sair do nosso lugar, não mudar um pingo nossa maneira de ver e o mundo e de vivê-lo, não alterar minimamente nossos (pré)conceitos, não acrescentar nada à nossa (sempre inacabada e em constante redefinição) humanidade. E podemos viajar sem sair do nosso canto, podemos percorrer rotineiramente os lugares de nosso dia a dia e cada vez surpreender-nos, deslumbrar-nos, enxergarmos no que vemos todos os dias novas dimensões e novas possibilidades, permanecermos abertos o tempo todo à descoberta, ao encontro, à mudança, renunciarmos a encaixar tudo – pessoas, coisas, lugares, acontecimentos… – em moldes pré-fabricados.
Esse é para mim o âmago do viajar: viajamos de verdade quando adotamos essa atitude, independentemente de se estiver acompanhada por deslocamentos espaciais de curta ou longa distância ou duração. Quando não encaramos uma jornada com espírito viajante, podemos até ir para o lado oposto do planeta, mas não estaremos realmente viajando.
Encarar uma jornada com espírito viajante é para mim, em primeiro lugar, nunca fechar as portas para o encontro com o outro. Nossa espécie encerra um potencial para surpreender-nos, para sacudir nossas certezas e visões de mundo, para transformar-nos tão forte quanto o de certas paisagens e lugares.
Lembro-me de um final de tarde de inverno nos arredores da Place du Capitole em Toulouse, Sul da França, em meados da década de 1990. Tinha terminado o primeiro semestre do meu curso de graduação, na Universidade de Siena (pequeno burgo no coração da Toscana – a uns setenta quilômetros de Florença, onde vivia – cujo centro histórico conserva praticamente intacto seu tecido urbano medieval), e para relaxar fui passar uma semana na casa de um amigo francês, na época professor de língua e literatura italiana na Universidade de Toulouse.
O início da viagem não foi tão relaxante, pois no meio da madrugada fui assaltado no segundo dos quatro trens que tive que pegar para chegar ao meu destino: estava sozinho num compartimento de seis poltronas quando, uma meia hora antes de chegar à estação de Gênova, subiram cinco rapazes visivelmente excitados pelo uso de drogas (muito provavelmente cocaína ou êxtase), voltando de alguma festa privada ou de algumas boate, e pouco antes de descerem em sua estação pediram que lhes entregasse tudo o que tinha na carteira e minha máquina fotográfica. Sendo cinco contra um, não tive muita escolha: lhes dei tudo o que pediram e cheguei na França sem um tostão no bolso, pois na época não possuía cartão de crédito e de saque. Felizmente, a maioria do dinheiro que levava o guardava escondido debaixo da roupa e o assalto não me prejudicou muito, a não ser pela sensação de insegurança que insinuou sorrateiramente em minhas entranhas e que me acompanhou, como uma sombra perturbadora, nos primeiros dias de minha estadia francesa.
Após o acontecido, minha tendência inconsciente era evitar travar relação com qualquer desconhecido, mas não foi o que aconteceu naquele fim de tarde em que estava sentado no terraço de um bar-restaurante em uma rua adjacente à Place du Capitole, com meus pensamentos perdendo-se no pôr do sol enquanto saboreava devagar uma taça de vinho tinto. Uma voz feminina encorpada, e mesmo assim impregnada de certa delicadeza, me chamou de volta ao presente.
– Está sozinho?
Uma moça baixa, com uma silhueta voluptuosa que parecia esculpida em mármore, pele de ébano e, apesar do frio, relativamente pouco vestida me fitava com um olhar simultaneamente curioso e pedinte.
– Estou.
– Posso te fazer companhia?
Supunha que aquela companhia tivesse um preço, o que não me interessava. Porém, uma atração ainda mais forte me instigava a não recusá-la. Não se tratava de atração sexual, pois a simples ideia de comprar um corpo alheio para possuí-lo o dessexualiza no instante para mim. Além do mais, naquela época ainda não tinha tido nenhuma relação sexual e passava bem longe da minha cabeça “estrear” com uma prostituta. Era outro tipo de atração: o desejo de saber mais sobre a vida, os pensamentos, as experiências de mulheres como aquela que se encontrava na minha frente que, eu sabia, quase certamente tinha sido levada para a Europa com o engano e estava sendo escravizada por alguém que devia ter seqüestrado seus documentos, tê-la espancado, estuprado e jogado semi-nua em ruas gélidas em pleno inverno, obrigando-a a se submeter a tudo o que viesse – transar sem camisinha, homens violentos, drogados, etc. – para levar-lhe toda noite certa quantia de dinheiro que, caso não conseguisse levantar, pagaria sofrendo mais estupros e surras. O que sente, o que pensa uma moça que vive aquilo diante de um viajante sentando num restaurante tomando uma taça de vinho?
– Se essa companhia tiver um preço, como imagino, não me interessa. – respondi, em meu francês precário. – Mas, se ainda não comeu, a convido para jantar comigo. Já que vai trabalhar a noite inteira é bom se abastecer, não é?
Pisquei o olho e apontei para a cadeira na minha frente.
– Obrigada. Era esse mesmo o convite que esperava – disse a moça sentando-se, enquanto eu me sentia um completo imbecil – é claro, o que iria querer uma prostituta de alguém sentado numa mesa de restaurante se não que pagasse o jantar dela?, pensei – e uma certa inquietação começou a rastejar pelo meu estômago. Que danado estou fazendo? Onde isso vai me levar?
Enquanto a desconhecida africana comia, deixei meus olhos passear pelo seu corpo semi-descoberto que, olhando mais de perto, aparecia menos perfeito, menos escultural, mas nem por isso menos sensual. Nas coxas, as pernas, a cintura, os seios, os ombros sua pele intensamente escura estava constelada de manchas cuja origem era difícil de determinar. Hematomas? Alguma doença? Em seu rosto, algumas escarificações sugeriam um possível pertencimento tribal.
Dezenas de perguntas ficaram entaladas em minha garganta, à espera de uma oportunidade, um sinal qualquer de que não resultassem chatas ou inoportunas. Qual o seu país de origem? Como chegou até aqui? Alguém a está explorando? Posso ajudá-la? Afinal, perguntei:
– De onde você vem?
– De longe – respondeu secamente.
Calei-me decepcionado, achando que não conseguiria extrair nada da vida dela, aliás nem mesmo travar alguma conversa significativa. Mas ela me surpreendeu completamente, quebrando o silêncio de repente.
– Eu era um homem – disse. – Você diria?
Não sendo o tipo de afirmação que esperaria para começar uma conversa, fiquei desnorteado. Deslizei rapidamente meu olhar pelo corpo dela e, sem saber o que dizer, respondi apenas:
– Não, realmente não diria.
– Mas não fiz cirurgia: era um homem, apenas.
Não tinha certeza de se tinha entendido o que estava querendo dizer. Continuei:
– Bem, não precisa fazer cirurgia para se tornar uma mulher: se você se sente uma mulher, você é.
– Não, não estou falando disso.
A esse ponto, compreendi que meus pressupostos e conceitos estavam atrapalhando a minha compreensão e resolvi fazer um esforço – que é sempre um esforço árduo, porque eles estão incrustados em minha mente com a força das tatuagens – para suspendê-los temporariamente.
– Está falando de quê, então? – perguntei.
– Em minha terra, eu nasci homem. Me apaixonei por uma mulher, mas não podia amá-la. Ela era filha de um deus, um deus muito poderoso, e a sangue divina não pode se misturar com as dos homens. Fiquei desesperado, quis me matar, mas ela também estava apaixonada por mim e fez um pacto com o pai dela para que a tornasse humana. Mas para isso tinha que pagar um preço: era a perda do seu sexo. Ela se tornou humana e homem e eu não quis amar outro homem. Ela ficou arrasada e fugiu para longe, eu me arrependi do que tinha feito. Quis ir buscá-la, mas antes de fazê-lo fui para o pai dela e também selei um pacto: me tornei mulher para poder amá-la quando voltasse a encontrá-la. Eu também teria que pagar um preço, falou o pai dela, mas não quis me dizer qual. Depois de virar mulher fui buscá-la: tinha ouvido dizer que tinha fugido para a França e busquei uma maneira de chegar até aqui, respondendo uma oferta de emprego para trabalhar em um restaurante. Cheguei, mas não era num restaurante onde iria trabalhar: entendi, então, qual era o preço que o pai da minha amada me obrigou a pagar. Ainda o estou pagando.
Enquanto ela contava essa história, meu pensamento viajou por um instante a uma noite de alguns meses antes, em Florença, enquanto voltava de carona para casa após sair com amigos. Sentado no banco de frente ao lado do motorista, enquanto o carro atravessava a avenida do parque Le Cascine, um dos principais pontos de prostituição da cidade, meu olhar cruzou por alguns segundos com o de uma mulher africana debaixo de um poste. Durante aqueles segundos, tive um inesperado vislumbre de consciência: senti que um olhar pode revelar uma vida. Era um olhar sem nome, mas grávido de histórias. Não sabia nada daquela mulher, mas aquele olhar me deixou entrever um mundo, um mundo que talvez não soubesse reconstruir com palavras, mas que pude sentir nas entranhas.
Ao lembrar-me daquilo, escutei o que a moça em Toulouse me contou atentando para seu olhar… com meus julgamentos suspensos. Tinha certeza de que não estava mentindo, não estava inventando nada: não sei como, mas sei que ela tinha vivido aquilo tudo. Para ela, tudo aquilo era real e seu olhar o revelava. A reação da maioria, talvez, tivesse sido considerar aquela mulher uma louca: a minha foi escutá-la com atenção, apenas.
Quando terminamos de comer, me agradeceu e se levantou. Desejei-lhe sorte e, em meu coração, torci para que reencontrasse o amor dela (ou dele) e conseguisse se libertar daquela vida e da escravidão das máfias. Fui embora de Toulouse três dias depois e não voltei a encontrá-la enquanto permaneci na cidade, nem nunca mais. Espero que tenha encontrado o homem/mulher da sua vida e que os dois sejam felizes em sua terra de origem ou onde for.
Alguns meses mais tarde, em minha primeira viagem fora da Europa, outro encontro iria deixar pegadas em minha memória. Após três semanas de participação em uma brigada internacional de trabalho voluntário em Cuba, em um acampamento na região rural da Província de Havana, permaneci na capital da ilha junto a Rodrigo, um rapaz português que tinha participado da mesma brigada – e que se tornará um dos meus melhores amigos, com quem ainda estou em contato e que, como eu, vive hoje no Brasil – e um amigo cubano, Alexis, que conheci naquela ocasião e que merece, em outro momento, uma narração a parte.
Os três conversávamos tomando um mojito no balcão de um bar na Havana Velha quando, como era comum na cidade na época em que a visitei pela primeira vez, alguém se aproximou pedindo que o convidássemos para beber conosco. Era um senhor que aparentava entre os setenta e os oitenta anos, um tanto ríspido nos modos e de cara quase sempre fechada, mas que adorava jogar conversa fora e – como muitos cubanos – apesar de sua origem humilde e de sua precária condição econômica, amava a literatura e gostava de conversar sobre poesia e política.
Passamos o dia inteiro com ele, que almoçou conosco e nos acompanhou em um tour pela Havana Velha conduzido pelo nosso amigo Alexis. Lembro que passamos um bom tempo debatendo se o sistema político cubano era uma ditadura, como sustentávamos Rodrigo e eu, ou uma “regime democrático não-capitalista”, como defendiam Alexis e o simpático velhinho, que alegavam com paixão a necessidade do partido único para liderar o processo que supostamente levaria a uma sociedade sem classes. Graças esse senhor descobri vários poetas cubanos, soube quais autores hispano-americanos e cubanos entre os que eu conhecia estavam proibidos na ilha, e discorremos horas a fio sobre escritores europeus, latino-americanos e cubanos, trocando ideias, opiniões e sugestões de leituras, numa tarde tórrida, porém lânguida e agradável, regada a muito rum.
Nosso companheiro, que não conseguia falar corretamente o meu nome e me chamava Antonioni, certamente devido à sua paixão pelos filmes do homônimo diretor italiano, era aposentado e escrevia poesia influenciado pela escola hermética que surgiu na Itália em meados do século XX, um de cujos principais precursores foi Giuseppe Ungaretti (1888-1970). Após vários mojitos, confessou que o sonho da vida dele era conseguir uma versão em espanhol de um livro clássico desse poeta, Vita di un uomo (publicado em 1969 e que reúne sua obra poética completa), do qual tinha lido fragmentos soltos encontrados aqui e acolá, mas que não existia em Cuba na versão integral. Não falei nada, mas prometi para mim mesmo que chegando de volta à Itália iria atrás daquele livro para ele.
Semanas mais tarde, já na Itália, encomendei em uma livraria internacional de Florença uma versão em espanhol de Vita di un uomo di Ungaretti, que chegou da Espanha alguns meses mais tarde. No mesmo dia em que chegou, liguei para o número de um orelhão num bairro popular de Havana que ele tinha me deixado como seu contato. Atendeu uma vizinha que foi procurá-lo e passaram-se um dez minutos antes dele chegar ao telefone. Após atender, demorou ainda uns minutos para me reconhecer até que, finalmente, se lembrou: “Ah, Antonioni!”. Quando disse que tinha conseguido para ele uma versão em castelhano de Vita de un uomo di Ungaretti, sua primeira reação foi me acusar de estar mentindo. Então, li para ele uns poemas e uma parte da introdução e, de repente, começou a chorar. Lhe custava acreditar que fosse verdade, pois estava atrás daquele livro havia mais de trinta anos. Em seguida, achou que estava tendo um infarto na linha, depois se acalmou, os vizinhos levaram água para ele e me perguntou quando voltaria para Cuba para encontrá-lo e entregar-lhe o livro. Naquele momento, não sabia se e quando teria condição de voltar para a Ilha Grande (voltaria em julho daquele mesmo ano e rodaria o país durante dois meses junto a um amigo, mas quando liguei para o velho isso ainda não estava nos meus planos), portanto pedi que me ditasse seu endereço para fazer o envio pelo Correio.
Meses depois, novamente em Havana, rodei de taxi popular à procura da rua onde morava até encontrá-la, mas uma parente – suponho que sua filha– me contou que tinha falecido uns meses antes. Ninguém soube me informar se antes de morrer tinha ou não recebido o livro, mas disseram que não chegou nenhuma correspondência para ele depois de sua morte. Sai de lá com o coração apertado, enquanto a brisa do Atlântico envolvia o úmido e cálido meio-dia da capital cubana, aliviando o calor que esmagava os corpos e atordoava as mentes.
Veja os posts antigos de O Vagamundo:
Insignificância e poder: o homem diante do sublime – 13 de novembro de 2012
No coração do lago, entre selvas e vulcões – 11 de setembro de 2012
Certa história de amor ou como viajar alimenta a criação – 14 de agosto de 2012
Os últimos confins da Terra – 10 de julho de 2012
Um plácido fim de tarde ao som das ondas – 12 de junho de 2012
No fim da viagem está o horizonte – 8 de maio de 2012
Caminhante, são tuas pegadas o caminho, e nada mais – 10 de abril de 2012