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A trilha sonora deste post é Cantares – Letra: Joan Manuel Serrat e Antonio Machado; Música e interpretação: Joan Manuel Serrat.

Sou europeu e fui adotado pela América do Sul. Ao longo de mais de trinta anos de existência, vivi em três países de diferentes continentes e passei longos períodos em outros dois. Sempre que pude, embora não tanto quanto teria gostado, devido a uma situação financeira sempre instável, fiz longas viagens de mochila pelo mundo. Sempre me senti atraído pelo encontro com o diferente; sempre procurei o deslumbramento, a vertigem, centelhas de significado para a minha existência no contato com outros lugares, outros povos, outras paisagens, no mergulho – embora por períodos breves – em ambientes não-urbanos. Sempre senti um impulso irresistível para o conhecimento e a mestiçagem com outros estilos de vida, com outras maneiras de pensar o mundo e de vivê-lo. Nunca me senti enraizado em lugar algum, sentindo à flor da pele aquela sensação de estrangereidade que Claude Lévi-Strauss, em Tristes Trópicos, assumiu como sua condição permanente, um sentimento de estranhamento constante que o fazia sentir-se estrangeiro em qualquer lugar, inclusive em sua cultura de origem.

Passei minha adolescência mergulhado em leituras de viagens, aventuras e descobrimentos. Tudo isso foi despertando e alimentando em mim uma ânsia de fuga, a aspiração para uma vida errante e uma percepção dilacerada entre um aqui e agora vivenciado como vazio, desprovido de sentido e um além (além do país, além do ambiente urbano, além das rotinas cotidianas) almejado como possibilidade de regeneração. Mais tarde novas relações e novas experiências diminuíram minha insatisfação com o momento e o lugar presentes; porém, minha ânsia quase compulsiva por viajar, pela busca de contatos com outras manifestações do humano – e, mesmo que por curtos períodos, com ambientes não-urbanos – ficou tão incrustada em minhas entranhas que continua sendo umas das mais violentas pulsões que me alimentam.

Ao longo de minhas experiências de viagem, me confrontei muitas vezes com o choque entre a expectativa e a experiência. Viajar, na maioria das vezes, me instigou a repensar minha maneira de ser e de viver.

Trilhando o Caminho de Santiago, aos dezenove anos, adquiri consciência de que aquilo que chamamos de “nosso corpo” e “nossa mente” não estão tão separados quanto pensamos e que uma atividade simples como o caminhar, em determinadas circunstâncias, pode estimular-nos a percebê-los como uma coisa só.

Em uma viagem de mochila de três meses em Cuba, que realizei aos vinte e um anos, intui que o que concebemos como nossas “necessidades” não são “dados”, mas construções mentais. Numa pequena cidade do interior da ilha, extremamente pobre, ao curar-me de uma violenta infecção intestinal que me acometeu pela intervenção de um curandeiro local, passei a incorporar em minha visão de mundo a consciência de que saberes, formas de conhecimento e interação com o mundo consideradas não-científicas não possuem um valor inferior, nem uma menor eficácia do que as das consideradas científico-racionais.

Camino a la Comandancia de la Plata 1997: Sierra Maestra, Cuba, 1997
Camino a la Comandancia de la Plata 1997: Sierra Maestra, Cuba, 1997

Em Cabo Verde, alguns anos mais tarde, uma experiência que vivi me fez intuir que o tempo – como tudo o que consideramos “evidente” – não é uma realidade objetiva, com propriedades inerentes. No arquipélago africano, percebi como diferentes percepções do tempo originam mundos diferentes.

Ilha de Santiago 1: Ribeira Grande ou Cidade Velha, a primeira cidade colonial fundada pelos portugueses. Ilha de Santiago, Cabo Verde, 2005
Ribeira Grande ou Cidade Velha, a primeira cidade colonial fundada pelos portugueses. Ilha de Santiago, Cabo Verde, 2005

Na Terra do Fogo, durante uma caminhada em um bosque durante a qual me perdi por causa de uma inesperada tempestade de neve, pude tomar consciência do quanto minha percepção do mundo sensível está condicionada pelo contexto urbano em que me criei e que contribuiu para forjar minha sensibilidade sensorial e minha visão de mundo.

Alrededores do Lago Argentino 10: Na Patagônia argentina, 2006
Alrededores do Lago Argentino 10: Na Patagônia argentina, 2006
Parque Nacional Torres del Paine, Patagônia chilena, 2006
Parque Nacional Torres del Paine, Patagônia chilena, 2006
Bahía Onelli, Braço Norte do Lago Argentino, Patagônia argentina, 2006
Bahía Onelli, Braço Norte do Lago Argentino, Patagônia argentina, 2006
Glaciar Perito Moreno, Patagônia argentina, 2006
Glaciar Perito Moreno, Patagônia argentina, 2006
Cañadón (Canyon) del Río Pintura, Patagônia argentina, 2006
Cañadón (Canyon) del Río Pintura, Patagônia argentina, 2006

Entre as dunas, os mangues e as restingas da reserva de desenvolvimento sustentável de Ponta do Tubarão, no litoral Norte potiguar, vivenciei na pele vislumbres de uma maneira diferente de perceber-me em relação ao ambiente, sentindo-me por alguns instantes apenas um bailarino de uma gigantesca dança da qual participava tudo o que me circundava, uma sensação parecida à que viveu o físico Fritjof Capra sentado numa praia no verão de 1969, como conta em O Tao da Física.

Visual do Estuário do Rio Tubarão. Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Ponta do Tubarão, Rio Grande do Norte, 2008
Visual do Estuário do Rio Tubarão. Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Ponta do Tubarão, Rio Grande do Norte, 2008

Alguns anos depois, em uma ilha semi-desabitada e totalmente coberta de vegetação no interior de um gigantesco lago da Nicarágua, determinadas experiências me instigaram a prestar mais atenção à forma como minha mente pré-direciona minha atenção, pré-define o funcionamento dos meus sentidos e meus comportamentos.

Rumo à Isla de Ometepe, Lago Cocibolca, Nicarágua, 2010
Rumo à Isla de Ometepe, Lago Cocibolca, Nicarágua, 2010
Floresta tropical seca no interior da Isla Zapatera, Lago Cocibolca, Nicarágua, 2010
Floresta tropical seca no interior da Isla Zapatera, Lago Cocibolca, Nicarágua, 2010
Pôr do sol no Lago Cocibolca com o vulcão Mombacho no fundo. Isla Zapatera, Nicarágua, 2010
Pôr do sol no Lago Cocibolca com o vulcão Mombacho no fundo. Isla Zapatera, Nicarágua, 2010

Fui flâneur em Madri, onde morei dois anos e meio, e em Buenos Aires, onde morei seis meses: percorri sem rumo pré-definido, em longas e demoradas caminhadas, bairros, parques, becos, avenidas, esquinas daquelas cidades completamente mergulhado em meus reflexos, nos detalhes sensoriais, as formas, as cores, os sons, os cheiros, as pessoas que – por alguma misteriosa razão – capturavam por alguns instantes minha atenção, e nas sensações, percepções, sentimentos, representações que a interação com tais estímulos me despertavam. Descobri, assim, novas formas de enxergar e de vivenciar os lugares por onde passava.

Ruinas de Quilmes, da civilização pré-incáica dos calchaquíes. Tucumán, Argentina, 2005
Ruinas de Quilmes, da civilização pré-incáica dos calchaquíes. Tucumán, Argentina, 2005

Fui turista em minha terra natal, a Itália, e vivenciei com o deslumbramento e a sensibilidade da primeira vez lugares – como Florença, a cidade onde morei a maior parte da minha vida – em que tinha passado anos sem perceber quase nada de tudo o que (re)descobri ao voltar neles como viajante.

Detalhe de Ponte Vecchio desde o Corredor Vasariano, Florença, 2012
Detalhe de Ponte Vecchio desde o Corredor Vasariano, Florença, 2012
Vista de Florença desde o Piazzale Michelangelo, 2011
Vista de Florença desde o Piazzale Michelangelo, 2011

Contarei mais sobre essas experiências de viagens, e sobre muitas outras que deixei de mencionar, nos próximos meses. É esse o propósito desta coluna: compartilhar fragmentos de minhas andanças pelo planeta, contar a quem possa interessar episódios, encontros, detalhes, reflexões que lugares, acontecimentos ou pessoas me despertaram. Todos os meses poderão ler essas histórias aqui no Compartilhe Viagens e as reflexões que elas me suscitaram no blog O Condor Errante.

Pelo que vivi até hoje, estou convencido de que viajar transforma. É uma experiência que pode modificar nossas ideias, nosso olhar sobre o mundo, nossos estilos de vida. Nem sempre acontece, claro, sobretudo nas viagens “de pacote” onde tudo está pré-definido: o que conheceremos, como o conheceremos, o que comeremos, o que faremos, o tempo que dedicaremos a cada aspecto da viagem… Quantos mais livre de amarras, de metas pré-fixadas, quanto menos ancorada a “certezas” – como resorts que reproduzem condomínios fechados, horários pré-definidos para tudo, etc. – e quanto mais aberta ao encontro, ao inesperado, ao imprevisível, às mudanças de rumo não planejadas for uma viagem, com mais probabilidade não seremos mais os mesmos depois de voltar para casa. Ao longo do caminhar, em algum momento talvez sejamos capazes de enxergar o próprio viver como uma imensa viagem.

É o que parecem dizer estes versos que encerram a trajetória não só de todo viajante, mas de todo homem. São do poeta espanhol Antonio Machado (1875-1939) e foram musicados por Joan Manuel Serrat em Cantares, peça imprescindível da trilha sonora da minha vida:

 

Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar[1]
.

 

É a principal legado que o viajar me deixou: a consciência de que não há lugar para onde ir, nem um rumo já traçado. O que há são nossos passos e o importante não é chegar, mas andar: é no caminhar que a vida acontece. Este é o primeiro passo de um caminho a construir, que faremos juntos. Então sejam bem-vind@s, companheir@s de viagem!

 

Para ver fotos de algumas de minhas errâncias pelo mundo:

http://www.flickr.com/photos/antonino_condorelli/sets/72157629392525478/

Complemente em O Condor Errante: O encontro com um condor na Patagônia: o que representou para minha vida e minhas viagens – Leia


[1] “Caminhante, são tuas pegadas / o caminho, e nada mais; / Caminhante, não há caminho, / faz-se o caminho ao andar. / Ao andar faz-se o caminho, / e ao voltar-se para trás / se vê a senda que nunca / há de se pisar novamente. / Caminhante, não há caminho, / só esteiras no mar”.


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