Antonino Condorelli                                                                   condor_76@hotmail.com                                                                           Twitter:@el_condor76                                                                                        Facebook: Antonino Condorelli

A trilha sonora deste post é Cabo Verde Manda Mantenha – Letra, música e interpretação: Cesária Évora. Ouça e assista:

Poucas experiências sacodem nossos conceitos como a de viajar. Viajando ultrapassamos fronteiras, não apenas geográficas: uma viagem nos leva além das erguidas pelo nosso pensamento… e nos estimula a redesenhá-las. Nunca cheguei de uma viagem igual a como tinha partido.

Lembro-me de uma tarde de alguns anos atrás, em uma pacata cidadezinha colonial na parte ocidental da Ilha de Santiago, a maior e mais populosa do arquipélago de Cabo Verde, um mundo na metade do caminho entre a ancestral placidez africana e a efervescente mestiçagem brasileira. É um pequeno país com a maior parte da população vivendo no estrangeiro – ou, como dizem os caboverdianos, na diáspora – estilhaçado em dez ilhas, nove das quais habitadas, mergulhado no coração do Atlântico a uns quatrocentos quilômetros da costa do Senegal, ex-colônia portuguesa berço de uma sociedade crioula que guarda afinidades com a brasileira (lá ficavam os escravos capturados em território africano à espera de serem “encaminhados” para terras tapuias e, nessa espera, muitos cruzaram-se com os colonizadores dando origem a um novo mundo mestiço), mas cuja população mais pobre é essencialmente negra e com modos de ser e de viver visceralmente ancorados em solo africano. O nome do país é um triste sarcasmo: grande parte do território das ilhas não passa de áridas colinas de rocha nua e altiplanos semi-desolados, os chãs, em alguns casos – como o de Santo Antão, a ilha mais septentrional – varridos quase constantemente por um vento tórrido procedente do Saara.

Ilha de Santo Antão
Ilha de Santo Antão
Ilha de Santo Antão
Ilha de Santo Antão
Ilha de Santo Antão
Ilha de Santo Antão

Entre outubro e novembro de 2005, passei três semanas perambulando por cinco das nove ilhas habitadas desse arquipélago vulcânico que desponta em meio ao Atlântico. Na época, cuidava da comunicação digital de uma organização-não-governamental de direitos humanos de Natal e o amplo alcance que chegou a ter um boletim digital que eu editava, graças à capacidade de propagação viral da Internet, fez ecoar nossas atividades e meu nome para além do Oceano. Conheci, assim, a fundadora e então presidente da Comissão Nacional para os Direitos Humanos e a Cidadania de Cabo Verde, a poestisa e juíza Vera Duarte, que me convidou para realizar uma oficina sobre comunicação e direitos humanos para os membros da comissão e para ser assessor internacional do Plano de Comunicação que a instituição estava elaborando naquele ano. Encontrei Vera em Natal em abril, quando foi hóspede da ONG da qual era membro e me fez o convite; voltei a vê-la em junho na Itália, onde fomos ministrar palestras e participar de encontros sobre direitos humanos no Brasil e em Cabo Verde; e, em outubro, parti para a terra dela, com a intenção de rodá-la o quanto puder depois de ministrar a oficina e participar dos encontros – um deles com o então presidente do país, Pedro Pires – que a comissão tinha organizado para mim. Naquela época, circulava nos meios políticos e da sociedade civil organizada caboverdiana que quatro anos depois Vera iria ser a primeira candidata a presidenta da história do país e, sinceramente, esperava poder voltar nestes anos ao Palácio Presidencial para dar-lhe uma abraço como primeira cidadã do arquipélago. Infelizmente, porém, por motivos que desconheço ela não chegou a se candidatar e, após um período como Ministra da Educação, a perdi de vista e não sei por onde anda e o que faz atualmente.

Ilha de São Vicente - Vista desde o Monte Verde
Ilha de São Vicente - Vista desde o Monte Verde
Mindelo - Ilha de São Vicente
Mindelo - Ilha de São Vicente
Mindelo - Ilha de São Vicente
Mindelo - Ilha de São Vicente
Baía das Gatas - Ilha de São Vicente
Baía das Gatas - Ilha de São Vicente

Mas voltemos àquela tarde de onde comecei… Eram os últimos dias de minhas andanças por Cabo Verde, estava de volta à Ilha de Santiago – que já tinha percorrido quase inteiramente na primeira semana de minha estadia no país – após ter vagabundado pelas de Santo Antão, São Vicente e Fogo. Dois dias depois sairia para a Ilha do Sal – a única, naquela época, com um aeroporto internacional – para uma breve volta por ela e, de lá, iria regressar ao Brasil.

Chã das Caldeiras, aos pés do Vulcão - Ilha do Fogo
Chã das Caldeiras, aos pés do Vulcão - Ilha do Fogo
São Filipe, antigos sobrados - Ilha do Fogo
São Filipe, antigos sobrados - Ilha do Fogo
Descendo a Monte Velha caminho de Mosteiros - Ilha do Fogo
Descendo a Monte Velha caminho de Mosteiros - Ilha do Fogo
Descendo a Monte Velha - Ilha do Fogo
Descendo a Monte Velha - Ilha do Fogo
Caminho de Mosteiros - Ilha do Fogo
Caminho de Mosteiros - Ilha do Fogo
Santa Maria - Ilha do Sal
Santa Maria - Ilha do Sal

Tinha passado o dia em Ribeira Grande, mais conhecida como Cidade Velha, a primeira vila fundada pelos portugueses fora das terras lusas, em meados do século XV, e primeira capital do país, povoada por degredados pátrios e escravos trazidos das vizinhas costas africanas. Hoje é uma aldeia sonolenta incrustada numa baía rochosa a poucos quilômetros de Praia, a atual capital do arquipélago, e guarda algum vestígio de seu passado como a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em estilo manuelino, a primeira igreja colonial do mundo, e a rua que leva até ela que foi a primeira urbanizada pelos portugueses nos trópicos. Além da igreja, despontam aqui e acolá algumas antigas casas de pedra e cal; o Forte de São Filipe que domina a aldeia desde uma altura de 120 metros, construído em 1590 para defender a cidade dos ataques de piratas; e o pelourinho colocado na praça central em 1520 e que ainda – como no Largo do Pelourinho em Salvador – se ergue como triste monumento à brutalidade humana.

Cidade Velha - Ilha de Santiago
Cidade Velha - Ilha de Santiago
Cidade Velha - Ilha de Santiago
Cidade Velha - Ilha de Santiago
Cidade Velha - Ilha de Santiago
Cidade Velha - Ilha de Santiago

No final da tarde me dirigi ao ponto de onde saiam os ônibus interurbanos para Praia, onde me encontrava hospedado na casa de um amigo jornalista. Era no meio da única praça da aldeia, a do pelourinho. Vi um ônibus vazio estacionado e perguntei ao motorista, que estava sentado na calçada, de que horas sairia. Sem levantar o rosto, o motorista respondeu com um ar um tanto incomodado – devia achar minha pergunta completamente estúpida – que sairia quando enchesse, com um tom de voz que denotava a absoluta obviedade daquele fato para o qual eu parecia não atentar. Preocupado, perguntei o que aconteceria se o ônibus não se enchesse, explicando que precisava voltar a Praia antes que anoitecesse. Igualmente incomodado pela minha nova pergunta e pela atitude nervosa que transparecia da minha voz, que devia resultar-lhe tão incompreensível quanto irritante, limitou-se a levantar os ombros como dizendo: “Como vou saber o que vai acontecer daqui ao final do dia”.

Chateado, fui dar uma volta na praia adjacente à praça, sem perder de vista o veículo para não correr o risco de que, chegando mais gente, se enchesse e saísse sem me esperar. Passaram várias horas sem que ninguém chegasse e, aos poucos, passeando na praia, olhando para o mar, contemplando as casas coloniais à minha volta, as crianças que brincavam na praça, o andar lânguido de mulheres diminutas que passavam levando na cabeça com extrema leveza trouxas de roupa e baldes de água enormes, desaparecendo ao longe enquanto subiam ladeiras íngremes carregando com desenvoltura aqueles vultos maiores do que elas, relaxei, deixei de pensar na minha volta a Praia, de me preocupar com o que aconteceria se o ônibus não enchesse e curti aquele momento, as paisagens e o plácido dia a dia daquela aldeia que se deparava aos meus olhos fluindo lentamente, enquanto o sol se escondia aos poucos atrás do horizonte e tingia a tarde de um suave tom amarelado. O barulho das ondas quebrando-se nas rochas era como um acalanto para os meus sentidos que, passados a irritação e o nervosismo, já estavam entregues à languidez sonolenta daquele fim de tarde e daquela cidade… por momentos, embalados pelas notas de Cabo Verde Manda Mantenha na voz de Cesária Évora, cuja melodia docemente triste atravessou meus pensamentos por alguns instantes.

Não lembro exatamente quanto tempo fiquei lá, mas hoje, ao pensar naquele fim de tarde, o recordo como um dos mais bonitos que já vivi: um fim de tarde no qual não fiz absolutamente nada a não ser esperar e, ao esperar, percebi que não havia nada a esperar e, por isso, pude me dar o luxo de simplesmente viver. Nada como viajar, para estraçalhar certas nossas couraças…

Para ver algumas fotos de minhas andanças por Cabo Verde, clique aqui e entre no meu álbum no Flickr.

Veja os post antigos de O Vagamundo:

No fim da viagem está o horizonte – 8 de maio de 2012

Caminhante, são tuas pegadas o caminho, e nada mais – 10 de abril de 2012


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