Antonino Condorelli
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Complemente em O Condor Errante – Anotações de um viajante: Cuba, 1997 – Leia

A trilha sonora deste post é Al final de este viaje. Letra e música: Silvio Rodríguez. Ouça e assista:

Camino a la Comandancia de la Plata 1997: Sierra Maestra, Cuba, 1997
Camino a la Comandancia de la Plata 1997: Sierra Maestra, Cuba, 1997

Tenho sido quase sempre um viajante solitário, mais por necessidade do que por escolha. Minha primeira viagem de mochila fora da Europa, porém, a fiz aos vinte e um anos junto a um amigo, então colega na universidade. Às vezes ter alguém ao seu lado para compartilhar suas angústias faz uma diferença enorme. Daquela vez, porém, o medo ficou entalado em minha garganta, apesar de ter perto de mim um bom amigo que falava minha língua e uma família inteira que se esmerou em cuidados, atenções e preocupação. Eu mesmo me neguei a aceitar o medo, a dar-lhe um nome: tentei afugentá-lo, sufocá-lo, reprimi-lo, me recusei a enxergá-lo nos olhos… mas não consegui expulsá-lo das minhas entranhas, que – como sempre – falaram mais alto. Não consegui expulsá-lo porque me confrontou com o mais temido de meus fantasmas: o da morte… a minha… um pensamento com o qual, mesmo tantos anos depois, ainda não consigo lidar com serenidade, até o ponto que escrever, pronunciar ou pensar naquela palavra me desperta um leve, mas incontrolável calafrio. E uma das vezes em que mais me senti de cara com ela, mesmo que na ocasião me negasse a admiti-lo, foi numa província remota da maior ilha do Caribe, no igualmente remoto – nesta época de aceleração frenética da existência – final do século passado, mais exatamente em 1997.

Naquele ano fiz uma viagem de quase três meses por Cuba. Junto ao amigo que dividiu as agruras e as alegrias daquela experiência, percorri quase todas as quatorze províncias da Isla Grande de trem, ônibus e pau-de-arara (na época – hoje já não sei – o meio de transporte mais utilizado pelos cubanos e o mais barato), hospedando-me nas casas de amigos e amigas conhecidos por correspondência (sim, bem antes do Facebook e do Twitter, aliás antes mesmo de ter uma conta de e-mail e de começar a frequentar salas de bate-papo tinha amigos espalhados pelo mundo) ou em pousadas econômicas. Tratava-se de um reencontro: no ano anterior tinha estado na ilha de Fidel Castro integrando uma brigada internacional de trabalho voluntário, organizada pela Associação de Amizade Itália-Cuba, mas em um mês de estadia tinha convivido mais com outros italianos e com os espanhóis, portugueses e franceses das brigadas gêmeas do que com cubanos e, nas raras brechas na cortina ideológica que aquele ambiente tinha construído ao nosso redor para impedir que enxergássemos com nossos próprios olhos a vida do país, tinha entrevisto um universo muito mais rico, denso, problemático, complexo, multicolorido e intrigante daquele que queriam que percebêssemos.

Por isto, tinha dado uma fugida de alguns dias para uma província do interior enquanto meus colegas cortavam cana e colhiam café e tinha ficado em Havana uma semana a mais depois dos companheiros da brigada voltarem para a Europa, mas não me pareceu suficiente. Tinha sido o bastante para me desencantar completamente com o regime castrista, que antes denominava poeticamente de “A Revolução”, e para acabar com minhas antigas idealizações românticas de guerrilhas e ditaduras tropicais de esquerda. Mas queria mais: sentia a necessidade de mergulhar de cabeça na ilha, de vivê-la em suas múltiplas faces, de estar próximo de seu povo e partilhar do mesmo pão. No episódio que estou prestes a contar esse pão acabou quase me matando, mas foi justamente a convivência íntima com o povo cubano e a aceitação plena de sua forma de viver que me salvaram.

Estávamos rodando pela ilha há mais de um mês e naquele dia saímos de Santiago, a segunda maior cidade do país, que ostenta um rico – tão sugestivo quanto mal-cuidado – patrimônio histórico colonial e uns instigantes miscigenação cultural e sincretismo religioso, característica de toda a parte oriental de Cuba, que a torna um efervescente cadinho de cores, cultos, visões de mundo e estilos de vida. Na noite anterior tínhamos voltado exaustos de uma excursão ao interior da província; meu amigo só queria tomar um banho – que iria ser de cuia, pois naquela época nas cidades cubanas faltava água até quatorze horas por dia – e dormir, mas eu estava faminto e fiz questão de comer alguma coisa no primeiro restaurante popular – isto é, para cubanos, pois havia uma divisão bem marcada entre os estabelecimentos em dólares, frequentados quase exclusivamente por turistas estrangeiros, e os em pesos, destinados aos nativos – que encontramos aberto. Ainda lembro que o único que ofereciam era um picadillo, uma sorte de sarapatel feito com miúdos de não sei qual animal, nem me importei em perguntar. Na manhã seguinte acordamos cedo porque, supostamente, nosso ônibus sairia às seis da manhã, embora – já estávamos acostumados a isso – acabou deixando Santiago por volta das dez, pois não tinha chegado ainda na hora prevista para a saída. Nosso destino era a província de Bayamo, no Sudeste de Cuba, a mais pobre do país, e concretamente a pequena cidade de Manzanillo, onde iria reencontrar uma velha amiga por correspondência e sua família, que já tinha conhecido pessoalmente na minha viagem do ano anterior.

Na primeira parada que o ônibus fez para que os passageiros fossem ao banheiro e lanchassem, comecei a sentir certo mal-estar no estômago e, improvisadamente, uma correnteza violenta empurrou a comida mal-digerida do dia anterior para minha garganta e vomitei copiosamente. No momento me senti aliviado e achei que não iria acontecer mais nada, mas foi só chegar a Bayamo – o fim da linha do nosso ônibus – que câimbras violentas começaram a massacrar meu estômago e uma dor de cabeça insuportável me deixou zonzo. O calor tórrido e úmido da região não contribuía para melhorar a situação. Como se não bastasse, o único transporte que havia para Manzanillo era o pau-de-arara e foi nessas condições que enfrentei uma viagem de uma hora e meia sentado no chão da parte traseira de um caminhão – pois os dois bancos laterais estavam lotados de gente – espremido entre outros corpos suados.

A casa da família que nos hospedou em Manzanillo era um barraco de telhado baixo extremamente quente com os vãos separados por cortinas puídas, o interior despojado, os poucos móveis carcomidos pelo tempo e a umidade, fogão a lenha na improvisada cozinha e, o que era dramático para mim no estado em que cheguei, sem água encanada no banheiro. Nada disso era novidade para meu amigo e eu, pois quase todas as residências em que tínhamos dormido até aquele momento eram daquele jeito, apesar de algumas serem de docentes universitários ou, como em Manzanillo, de uma médica recém formada. Contrariamente à maioria dos europeus que visitam a ilha e, por ventura, chegam a conhecer mais de perto a realidade de seus habitantes, aquilo não me indignava nem espantava, aliás me deixava empolgado, pois acreditava – e continuo acreditando – que a simplicidade, a sobriedade deveriam ser atitudes tatuadas nas mentes e nos estilos de vida de todas as classes sociais. (A maioria dos cubanos que conheci não pensava da mesma forma e não gostava de viver daquele jeito, o que é compreensível: no caso deles, não se tratava de uma escolha voluntária fruto de uma tomada de consciência, mas de uma imposição goela abaixo por parte de um poder incontestável). No entanto, quando cheguei a Manzanillo senti falta – pela primeira vez desde que me encontrava em Cuba – de condições de alojamento mais confortáveis. Uma violenta disenteria se apoderou de mim no instante em que pisei na casa dos nossos anfitriões e penei para conseguir esvaziar completamente o vaso sanitário com baldes enchidos por meio de uma bomba situada no quintal da casa, a única fonte de água da residência. Estava ardendo, tomei um banho de cuia gelado e logo depois medi a temperatura: quarenta graus. O diagnóstico da minha amiga médica não demorou: me encontrava, segundo ela, com uma virulenta infecção intestinal de origem bacteriana.

Em 1997, Cuba se encontrava em pleno período especial: uma época de enormes privações que o país sofreu após a queda da ex-União Soviética, que sustentava sua frágil economia. Além disso, Manzanillo era uma cidadezinha do interior da província mais pobre e abandonada da ilha. Nem o posto de saúde mais próximo, nem o hospital onde meus amigos me levaram dispunham de antibióticos para fazer frente àquela emergência. Ao retornar para casa, uma vizinha dos nossos anfitriões teve uma idéia: “Só nos resta o sobao”, disse. Os rostos de todos os presentes, com exceção de mim e do meu amigo, se iluminaram. “Aqui – acrescentou dirigindo-se a mim – quando alguém tem problemas de estômago a solução é o sobao”. Foram então chamar um ancião negro de aspecto risonho, mas imutável, que não pronunciou uma única palavra enquanto permaneceu em nossa presença. O apresentaram como um mestre da medicina popular e nos explicaram que a prática comum em seu meio para aquele tipo de doenças era uma determinada massagem nos tornozelos, apelidada sobao, realizada por esses curandeiros reconhecidos pelo povo, mas não pelas autoridades médicas e políticas do país.

Desesperado, deixei que o curandeiro fizesse a massagem em meus tornozelos, apesar de não cultivar muitas expectativas sobre os efeitos daquela “cura” posto que, em minha maneira – que então era bastante limitada – de ver o mundo, não conseguia enxergar conexão alguma entre aquela massagem e a bactéria que estava afetando meu organismo. Enquanto o velho curandeiro fazia seu trabalho, escutava os comentários dos espectadores ao meu lado: “Ainda bem que ele é de confiança, pois dizem que se não fizer exatamente como é para ser feito o sobao mata”; “Pode crer, conheço várias pessoas que morreram por causa de charlatães que se fizeram passar por curandeiros experientes”; “Pois é, além do mais o paciente tem mesmo é que acreditar: se não tiver fé, de nada adianta”… Tinha câimbras violentas arrebentando meu estômago, náusea, dor de cabeça e estava ardendo de febre; estava sentado numa cadeira de balanço com as pernas para cima enquanto um senhor afro-cubano desconhecido massageava sei lá de que maneira os meus tornozelos e várias pessoas ao meu redor cochichavam de forma plenamente audível que aquilo que estava sendo feito comigo era uma prática perigosa que de não ser bem realizada podia matar… Devo confessar que até aquele momento nunca tinha experienciado de forma tão vívida, tão arrebatadora a sensação de que a minha hora estava próxima e de que, muito provavelmente, estava chegando ao fim da linha. Enquanto o sobao acontecia me ocorreram os versos de Al final de este viaje, uma das minhas músicas favoritas do cantor e compositor cubano Silvio Rodríguez, cujas melodias impregnaram grande parte da minha experiência na Isla Grande.

A massagem durou uma meia hora e, ao terminar, o velho curandeiro fez um sinal da cruz com as mãos à altura do meu estômago. Sem dizer mais nada, cumprimentou os demais com um gesto e foi-se embora. Olhei para meu amigo, que estava tão visivelmente preocupado e angustiado quanto eu. Não confessei para ele, nem para ninguém o que estava pensando e o que temia: aliás, tentava afugentar aqueles pensamentos da minha cabeça e me auto-convencer – sem muito sucesso – de que tudo iria dar certo.

Ao acordar no dia seguinte, por minha enorme e imensamente grata surpresa, estava completamente sem febre e quase sem mais cólicas. Poucas horas depois, estava em plena saúde. Não sei, realmente, o que aconteceu comigo naquele dia. Mas aquela experiência foi um duro golpe a qualquer forma de arrogância e me proporcionou um vislumbre, ainda um tanto indefinido, de uma consciência que anos mais tarde adquirira uma forma clara em minha visão de mundo. Viajando, aprendi que existem muitas maneiras de entender os fenômenos e de interferir neles e todas, desde que beneficiem o homem e os demais seres ou não os prejudiquem, são válidas e legítimas.


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